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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Dispensa de cumprir mandamentos


À medida que a minha terceira idade se aproxima, mais veemente é o meu desejo de obter a dispensa eclesiástica de cumprir alguns Mandamentos.

Calma, prezado leitor! Não entrei em nenhum processo de decadência moral, desses que os entendidos denominam venalidade da velhice. Nele entram alguns idosos, iludidos com a miragem de usufruir os últimos anos. Adotam comportamento desbragado, escamoteando a perspectiva do que os espera depois de um fim cada vez mais próximo. Quanto a mim, sempre agi com a intenção clara e explícita de desviar-me do inferno, e não a mudarei nos anos que me restam. Muito diferente, portanto, do que pode dar a entender a minha primeira frase de hoje. Explico-me.

O Evangelho me prescreve como segundo maior Mandamento o amor ao próximo como a mim mesmo; e afirmando que sempre teremos pobres entre nós, inclui o dever de amar meu próximo que seja pobre, ajudando-o de alguma forma. Acontece que os “mandamentos” do mundo mundano são muito diferentes desses. A palavra de ordem atual, por exemplo, é suprimir as desigualdades. Mas não havendo desigualdades, deixariam de existir pobres entre nós, exceto naquela situação paradoxal em que todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. Ficarão todos igualmente pobres? Ou ficarão todos igualmente ricos? Nivelamento por baixo ou por cima? Em qualquer hipótese, como cumprir o segundo maior Mandamento em relação aos pobres, se todos passarem a ter (ou não ter) tanto quanto eu?

Convenhamos, porém, que ainda não chegamos a essa hipotética situação de completa igualdade, tão contrária à afirmação evangélica. Um amplo contingente de pobres está aí para receber esmolas. Mas esse mesmo pessoal do nivelamento por cima ou por baixo decretou que dar esmolas não resolve o problema dos pobres; e além disso é um ato de orgulho, como se minha intenção fosse espezinhá-los, ostentando minha riqueza superior à deles. Não sei de onde tiraram que não dar esmolas é um ato virtuoso, mas percebo que muitos estão embarcando nessa onda.

Quando ando pelas ruas, meu costume é aguardar que um gesto do pobre me mostre seu desejo de receber uma esmola, e após uma avaliação rápida atendo ou recuso o pedido. Não devo tomar a iniciativa de oferecer esmola a quem aparenta pobreza, é melhor esperar que o outro confirme a aparência com algum gesto. Se eu me adiantasse, oferecendo esmola baseado apenas na aparência de pobreza, poderia estar humilhando quem não precisa de esmola, e a emenda sairia pior que o soneto.

Hoje a minha disposição para dar esmolas chocou-se com a escassez de pobres querendo recebê-las. Encontrei muitos com roupas de indigentes, mas pouquíssimos manifestaram sua necessidade. Não foi a primeira vez que encontrei gente nessa situação, mas hoje a proporção deles era tão maior, que me chamou a atenção. Até parece que um decreto da moda convenceu grande parte da população a usar roupas inqualificáveis, uma espécie de miserabilismo voluntário. E assim ficou ainda mais difícil decidir a quem devo abastecer de trocados. Teria que distinguir também o pobre autêntico de quem deliberou vestir roupas maltrapilhas.

Passei a observar mais atentamente.

Lá vem uma calça jeans desbotada, com bainhas desfiadas e ostensivos rasgões lamentáveis. Mas o rapaz tem cara de conquistador barato, não me convence a dar-lhe esmola. E se fosse mendigo, não deixaria de me ver, mas passou direto.

Aquela do outro lado da rua parece rameira, com cabelo tipo picumã, cara que não vê água há uns três dias, saia de cigana que nunca passou roupa. Se eu lhe desse uns caraminguás, sem dúvida ela dispararia um xingatório contra mim, dizendo-se mulher de respeito e outras alusões de situação financeira confortável.

Acaba de ultrapassar-me em marcha rápida uma camiseta de loja 1,99. Esse provável catador de latinha achou-a em uma sarjeta e vestiu-a sem lavar, tudo indica ser um necessitado. Mas nem me viu, e agora está entrando num carrão importado.

Ora essa! Será que os meus conceitos de pobreza estão ultrapassados?

Quando entrei na lanchonete para um cafezinho, duas mendigas resmungavam contra um “sovina”, que só lhes deu o troco do que “esbanjou” no lanche. Ao sair, guardei meu troco e mudei o trajeto, para evitar desaforos de pobres mal agradecidas.

Deitado num banco de jardim, com a aba voltada para cima, um chapéu parecia aguardar trocados para um velho com sandália havaiana, bermudão e sem camisa. Não dou esmola a velho semi-despido; mas ele se levantou antes, pôs o chapéu e partiu.

Não encontrei mendigos autênticos. Entrei numa igreja para pedir dispensa dos Mandamentos da caridade, mas nem consegui rezar. Lá na frente um líder sindical, com barbicha de guerrilheiro e camiseta com logocara de Che Guevara, incitava seus ouvintes contra a desigualdade, os privilégios. Pensei em amenizar um tanto sua pobreza revoltada, dando-lhe alguns trocados, e esperei que terminasse a arenga.

Espera inútil. Terminado o sermãozinho subversivo, ele subiu ao altar para prosseguir a celebração; com a roupa do corpo, sem nenhuma demonstração de respeito. Seria um sacerdote? É o que suponho, mas não fiquei lá para atirar-lhe na cara a esmola e outras verdades bem mais valiosas.

Saí da igreja, mas pretendo procurar em outras algum sacerdote que esteja de fato preocupado com os Mandamentos, a compostura, a salvação das almas.

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Jacinto Flecha

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Jacinto Flecha, médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.

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