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27 min — há 5 anos
Deus costuma escrever certo por linhas tortas — é o que a sabedoria popular ensina aos nossos atribulados dias. E na História, mestra da vida, os exemplos são incontáveis: muitas enfermidades levaram pecadores a abandonar seus pecados; insensatos recuperaram o juízo, ante os desastres que provocaram; catástrofes foram anunciadas por Nossa Senhora em Fátima, no final das quais os homens abandonariam os maus costumes; mais próximo de nós, o incêndio que devorou o telhado da catedral de Notre Dame de Paris já inspira reações benéficas em não poucos. Em que sentido?
Lendo o historiador da arte Émile Mâle (1862-1954) — membro da elite suprema da intelectualidade universal, que é a Académie Française — uma pergunta me ficou na cabeça, e seguramente se apresenta na de muitos católicos: por que a Providência teria permitido que um fogo com furor infernal devorasse o teto de um símbolo tão sublime da Igreja Católica?
Incêndio que desperta católicos tíbios
Aquele ditado da sabedoria popular tem uma confirmação nos escritos, visões e ensinamentos de uma das maiores místicas da França, Marie des Vallées (1590-1656), que foram anotados por São João Eudes e adotados por São Luís Maria Grignion de Montfort, o grande mestre da devoção a Nossa Senhora. Ela ardia de zelo pela causa de Deus, e clamava para que fossem expulsos da Terra os demônios e seus sequazes mais próximos (sem meios termos, ela os denominava bruxos). Renovando fervorosamente esse pedido à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora, a resposta negativa de Deus Pai foi simplesmente: “NÃO!”. Isto me deixou pasmo, pois os raciocínios humanos são pobres, sobretudo quando desamparados pela perspectiva histórica com que Deus conduz os eventos humanos. O próprio São João Eudes não conteve a sua admiração, e concluiu: “Pelo seu poder admirável, e por uma bondade incomparável, Deus forçará os nossos inimigos a contribuir para a nossa salvação”.
Os inimigos a que se referia São João Eudes são os demônios e seus asseclas, e ele pensava no abalo universal que Deus anunciava para salvar os bons, mas desanimados, desconhecedores do satânico processo revolucionário que naquela época já corroía ativamente até os melhores, mas ainda de maneira secreta. Olhando as imagens do incêndio de Notre Dame, notadamente a queda de sua simbólica agulha, podia-se imaginar demônios soprando as chamas e atiçando-as contra a casa de Nossa Senhora.
Marie des Vallées ouviu também Deus Pai dando ordens aos diabos: “Ide! Eu vos envio como trombetas para acordar os meus filhos que estão adormecidos na sombra da morte” (isto é, do pecado). As outras pessoas da Santíssima Trindade, e também Maria Santíssima, falaram no mesmo sentido, e ao final foi dada uma ordem aos demônios: “Ide, como soldados encolerizados, prender aqueles que não quererão se converter”. São João Eudes acrescenta que os diabos saíram para cumprir essa missão na Terra. Mas, assim agindo, farão os homens ruins ou relaxados “sofrer tantos tormentos, que se sentirão como se estivessem obrigados a fazer penitência”.[1] Lembremos que penitência foi o grande pedido de Nossa Senhora em Fátima!
Algo disso não explicaria as tragédias e as dores que sofremos coletivamente? E não se daria o mesmo na nossa vida individual?
Reconstrução de Chartres – exemplo de fé
Meditando nisso, voltei ao erudito livro Notre Dame de Chartres,[2]de Émile Mâle.A atual catedral é um dos mais imponentes edifícios góticos da Europa, e é consagrada a Nossa Senhora. Foi reconstruída sete vezes, cada vez maior, mais bela e mais sacral. Conduzido por um guia, pode-se ver até os fundamentos da primeira humilde catedral. Esta havia sido levantada pelo bispo D. Fulbert (970-1028), no início do século XI, e foi restaurada por Santo Ivo (1040-1115). A atual surgiu sobre as ruínas da sexta reedificação.
Pouco antes da metade do século XII, foi feito um campanário separado da igreja, correspondendo à atual torre norte, em estilo românico, completada no século XVI por uma flecha gótica. Segundo Émile Mâle, as gerações que fizeram as cruzadas tinham amor à grandeza, e o senso da simetria os levou a erguer, do lado sul, um campanário similar. Decidiu-se que as duas torres não ficariam isoladas, e que a catedral seria ampliada até incluí-las. A nova fachada seria ainda mais magnífica, com esculturas que a tornariam deveras digna de Nossa Senhora.
A fachada antiga foi desmontada pedra por pedra, e refeita unindo as duas torres, ampliando assim a catedral. Essas altas torres em louvor à Santa Mãe de Deus suscitaram até na Inglaterra um entusiasmo atestado por muitos relatos da época. Notre Dame de Chartres era o maior santuário mariano da Cristandade, cujo maior tesouro é o véu de Nossa Senhora, uma relíquia venerada até hoje. De modo similar, Notre Dame de Paris conservou a Coroa de Espinhos desde que a Revolução Francesa depredou a Sainte Chapelle, construída para guardar essa santa relíquia.
Em 11 de junho de 1194, um pavoroso incêndio consumiu o teto de Chartres, que era feito em madeira como o de Notre Dame de Paris. O velho edifício ardeu durante três dias, sendo comparativamente bem maior que o de Paris. Em 1506, mais um fogo violento chegou a derreter até os sinos. O telhado de Chartres voltou a ser abrasado em 4 de junho de 1836, quando as chamas atingiram 15 metros de altura. Mas os bombeiros conseguiram salvá-lo, e dois anos depois ele estava refeito; contrariando o “desejo” da imprensa, que havia declarado a destruição “irreparável”.[3] Houve ainda tempestades de raios que atingiram a torre sul em 1539, 1573 e 1589; e contra a agulha, como agora em Paris, em 1701 e 1740.
O incêndio de 1194 foi furiosamente impiedoso. Só poupou a fachada ainda descolada da nave, e devorou boa parte da cidade (até hoje, em lojas e casas, há restos subterrâneos da velha cidade salvos do fogo). Mas Émile Mâle narra que a sofrida população não se angustiou tanto com suas perdas. Apinhada diante da catedral fumegante, e com lágrimas nos olhos, o que todos queriam saber era como se encontrava o véu de Nossa Senhora, mas não era ainda possível ingressar no recinto. De repente, como numa visão sobrenatural, viram sair uma procissão de dentro do amontoado de pedras calcinadas. Eram sacerdotes levando nos ombros o grande relicário, com o véu surpreendentemente preservado.
Os clérigos de Chartres haviam corrido para salvar a relíquia, mas ficaram envoltos pelo fogo e se refugiaram na cripta inferior, até que pudessem sair. A alegria foi imensa. No momento, o bispo, os cônegos e os homens ricos da região engajaram parte de suas fortunas e proventos para erigir uma nova catedral, ainda mais admirável. O mesmo gesto de generosidade que se repetiu agora, por numerosos milionários, empresas e particulares do mundo todo, em favor da restauração da catedral parisiense.
Entusiasmo, dedicação e penitência
Na Chartres de 1194, um entusiasmo jamais visto se irradiou até os campos, contagiou o país e o outro lado do Canal da Mancha. O Livre des Miracles de Notre Dame, escrito na época, descreve uma epopeia coletiva, onde multidões vieram oferecer seu trabalho. Ricos e pobres empurravam carroças carregadas de pedras e material de construção, mas também de vinho, trigo e alimentos para os voluntários engajados no imenso canteiro de obras.
Reviviam-se assim as jornadas de 1144, durante a construção das torres e da fachada. Robert de Torigni, abade do Monte Saint-Michel, escreve em sua Crônica: “Viram-se em Chartres fiéis que se atrelavam a carros carregados com pedras, madeira, trigo e tudo o que poderia ser utilizado nos trabalhos da catedral, cujas torres cresciam como por arte de magia. O entusiasmo tomou conta da Normandia e da França: em todos os lugares se viam homens e mulheres a arrastar fardos pesados através de pântanos lamacentos; por toda parte se fazia penitência; em todo lugar perdoavam-se os inimigos”. Os voluntários de Pithiviers estavam tão cansados, quando atravessaram Puiset, que os habitantes locais quiseram aliviá-los da carga. Mas os de Pithiviers fizeram questão de honra carregar os fardos até o fim, pois não queriam perder os méritos da peregrinação.
O historiador sublinha que a França vivia num estado de heroísmo e desejo de ganhar méritos com o próprio sacrifício, o mesmo motor que levava os cruzados a reconquistar Jerusalém. O norte da França estava em comoção. A generosidade popular enchia os cofres de esmolas. A narração do milagre do véu de Nossa Senhora comovia as multidões. Repetiam-se as cenas dos anos anteriores, quando Haimon, abade de Saint-Pierre-sur-Dives, descrevia aos monges ingleses de Tutbury os eventos extraordinários da Normandia: “Vemos milhares de fiéis, homens e mulheres, se atrelarem a pesados carros. Entre aqueles servos voluntários há senhores poderosos e mulheres de nobre berço. Entre eles reina a mais perfeita disciplina e um profundo silêncio. Durante a noite eles se reúnem num acampamento com suas carroças, o iluminam com velas e entoam cânticos. Eles trazem seus doentes, na esperança de que serão curados. Está estabelecida a união dos corações; e se alguém está tão endurecido que não perdoa seus inimigos, a sua oferenda é removida da carroça como algo impuro, e ele próprio é expulso com nota de ignomínia da sociedade do povo santo.”
Hugo, arcebispo de Rouen, informava a Thierry, bispo de Amiens, que os normandos, tendo ouvido falar do que acontecia em Chartres, se empenharam em imitar o exemplo. Constituíram associações, e após terem confessado seus pecados, se atrelaram às carroças sob a liderança de um chefe. Acrescenta o arcebispo: “Nós permitimos a nossos diocesanos praticarem esta devoção em outras dioceses”.
As bênçãos provenientes da graça
Não espanta, pois, que o Livre des Miracles descreva prodígios da graça.Em Soissons, um jovem inglês doou para a imagem de Nossa Senhora um colar de ouro que comprara para uma moça de Londres, com quem iria se casar. O sacrifício não foi fácil, mas ele o fez pela Virgem Santíssima. Na noite seguinte lhe apareceram três damas de uma beleza extraordinária. A mais bela de todas se apresentou: era Nossa Senhora, e levava no pescoço o colar que ele havia doado, agradecendo-lhe o presente. O rei inglês Ricardo Coração de Leão, ouvindo a história de seu súdito, ficou tão tocado que, não satisfeito com a doação, foi a Chartres para carregar em procissão o grande relicário do véu. Ricardo estava em guerra com o rei francês Felipe Augusto, mas a doce influência da devoção a Nossa Senhora reconciliou os inimigos. Por toda parte narravam-se prodígios de caridade e penitência operados nos canteiros de obras, ou em todo lugar onde algum devoto se desprendia de um bem, renunciava a uma dívida, perdoava um adversário, tudo pelo bem da catedral de Chartres.
Émile Mâle acrescenta que, mesmo não conhecendo a História, é impossível negar que uma catedral assim não poderia ser erguida em tão pouco tempo, e com tanta grandeza, se não houvesse um élan de amor e entusiasmo sem precedentes. Na ordem medieval houve um impulso de fé, abnegação e espírito de sacrifício, do qual a reconstrução de Chartres foi o mais belo exemplo.
Mais que em todo o Egito antigo
No seu livro “As raízes das catedrais”,[4] o arquiteto, historiador e geógrafo Roland Bechmann calculou que em três séculos a França carreou mais pedras que o Egito antigo em toda a sua história. Construía-se e se reconstruía. O que assim se erguia era um autêntico código simbólico artístico católico, que por meio de figuras ensinava os homens a verem em cada imagem uma outra realidade superior. Chartres foi um paradigma do élan coletivo voltado para esse mundo superior. O artista que esculpisse uma pedra para a catedral de Nossa Senhora tinha certeza de que imitava Deus, desejoso de que a matéria servisse de leitura para o homem.
O que via o pedreiro, atrelado à carroça rumo a Chartres? O que via o monge contemplativo fechado em sua cela? Ou o educador, meditando no claustro antes do sermão ou palestra? A Idade Média respondia unanimemente: o mundo é um símbolo, e a catedral contém em si o resumo dos símbolos e dos simbolizados. O mundo é um livro escrito pela mão de Deus. E construindo ou reconstruindo a catedral, até o mais humilde carregador de pedra coopera numa obra divina que o assemelha ao Criador.
Chartres, Paris e a promessa da conversão
Duas catedrais, dois incêndios, duas épocas separadas por nove séculos. Dois eventos que estariam em pé de igualdade na presença de Deus, eterno e imutável. Mas haverá na nossa época a fé, a sensibilidade ao sobrenatural e ao maravilhoso, suficientes para refazer dignamente o que se queimou em Paris? Não nos faltam meios técnicos para isso, e temos recursos em muito maior escala do que havia em Chartres. Mas antes de ocorrer o incêndio de Paris, a resposta prudente seria um rotundo NÃO. Pois, sob o pretexto de modernidade, uma recusa ideológica à fé, sistemática e igualitária, impulsiona certos governantes ao contrário do que se realizou com o monumento medieval de Chartres.
Mas depois das chibatadas ígneas dos demônios, da qual falou Marie des Vallées, podemos agora constatar e enaltecer as reações comovidas de muitos que até há pouco não pareciam se importar com Notre Dame. Reações que se multiplicam sobretudo ao ver os estandartes da TFP francesa em praças e avenidas de Paris, convocando os transeuntes a exigir a recuperação de Notre Dame à l’identique (do modo como era). Diante de tantas reações assim, a resposta provável pode muito bem ser outra.
[1]) – “La vie admirable de Marie des Vallées et son abrégé redigés par Saint Jean Eudes”, Centre Saint-Jean-de-la-Croix, Mers-sur-Indre, 2013, p. 311.
[2]) – Notre-Dame de Chartres, Flammarion, Paris, 1994, pp. 23-26.
[3] – Cfr. “La Gazette Nationale”, 6 de junho de 1836, apud
[4] – “Les racines des cathédrales”, Payot, Paris, 2011, 330 p.
FONTE: Revista Catolicismo, Nº 822, Junho/2019.
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