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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Os sete Santos ressuscitados e a beleza da mentalidade medieval


Comentários do Prof. Plinio para sócios e cooperadores da TFP.

O texto é da “Legende Dorée” [Legenda Áurea] de Jacques de Voragine. Só sabemos que será uma coisa muito áurea e muito bela…

    

“No tempo em que governava o imperador Décio, por volta do ano 252, eclodiu grande perseguição contra os cristãos. Uma das cidades mais atingidas foi Éfeso, onde as crueldades atingiram um tal ponto que as delações entre as famílias se tornaram frequentes, havendo muitos apóstatas.

      “Sete cristãos muito amigos – Maximiano, Malco, Marciano, Dionísio, João, Serapião e Constantino – retiraram-se para suas casas e entregaram-se à penitência, lamentando o que viam. Como eram funcionários do palácio, Décio sentiu sua falta e ordenou que comparecessem à sua presença para sacrificarem aos ídolos. Os sete decidiram, depois de distribuírem seus bens, isolar-se no monte Celion, aí vivendo como eremitas. Delatados por seus familiares e sentindo que em breve seriam presos, Deus permitiu que caíssem em sono profundo. O imperador ordenou que obstruíssem com pedras a caverna onde estavam, para que morressem de fome.

      “Ora, tendo se passado quase dois séculos, no terceiro ano do reinado de Teodósio, a heresia que negava a ressurreição dos mortos começou a se difundir rapidamente. O imperador, profundamente desgostoso, retirou-se em seu palácio, e revestido de um cilício, chorava e rezava dias inteiros. Deus ouviu as suas preces e confiou aos sete adormecidos de Éfeso a missão de comprovar a ressurreição da carne.

      “Alguém começou a construir estábulos no monte Celion. Quando os marceneiros começaram os trabalhos, os sete mártires despertaram, saudaram-se e, sem perceber a passagem do tempo, enviaram Malco à cidade para buscar pão e observar o que se passava. Malco levava consigo algumas moedas, e partiu. Ao chegar a Éfeso, admirou-se ao ver a cruz à entrada da cidade. Seu espanto não teve limite, ao vê-la novamente em outros locais públicos e ouvir muitas pessoas falando livremente de Cristo. Mas suas dificuldades começaram ao comprar o pão. Quando pagou, o comerciante, surpreso, indagou se havia achado algum velho tesouro. Estabelecida a confusão, o pobre Malco foi acusado de ladrão e arrastado ante o bispo São Martinho e o procônsul Antipater. Malco explicou que as moedas eram de seus pais e que eles moravam naquela cidade, Éfeso, mas quando citou seus nomes ninguém os conhecia. Disse-lhe então o bispo que não podia acreditar nele, pois a efígie cunhada no dinheiro era de Décio, imperador de séculos atrás. Então, Malco respondeu que deveriam segui-lo e ver seus companheiros, pois tudo o que ele sabia é que, no dia anterior, eles haviam fugido à cólera de Décio e se refugiado na montanha.

      “Sentindo em tudo aquilo a mão de Deus, São Martinho ordenou que as autoridades civis, o clero e grande multidão o seguissem até o monte. Lá chegando, entre as pedras, à entrada da gruta, foi encontrado um velho manuscrito que contava a história dos mártires ali soterrados. Mas ao penetrarem na caverna, todos viram os santos vivos, os rostos resplandecentes. O bispo e o procônsul advertiram Teodósio, que correu de Constantinopla a Éfeso para presenciar o prodígio. Ajoelhado, comovido, o imperador exclamou que era como se estivesse vendo Cristo ressuscitando Lázaro. Disse-lhe Maximiano: “Foi para vós que Deus nos ressuscitou neste grande dia da ressurreição, a fim de que não tenhais dúvida alguma sobre ela”. Depois, os sete inclinaram a cabeça e entregaram suas almas a Deus”.

      Indiscutivelmente muito bonito! Não se pode negar uma grande categoria a toda essa concepção! 

      “Após havê-los osculado, Teodósio pretendeu enterrá-los em esquifes de ouro, mas foi impedido por uma visão que teve em sonhos. Os mártires deveriam permanecer na terra, até o fim do tempo. Para consolar-se, o imperador somente revestiu com pedras douradas seu sepulcro, e depois disso, os bispos que proclamavam a ressurreição dos mortos venceram completamente seus adversários”.

iluminura de autor desconhecido ou “Frater Rufillus“ (Wikipedia)

      Preciso começar por dizer uma coisa, e sei que com isso posso chocar: impossível não é…! Quer dizer, a gente sorri porque algumas coisas parecem terem sido colocadas na narração de propósito. Por exemplo, esse manuscrito pode ter demorado 200 anos sem se corromper, e se encontrar na entrada da gruta, justo quando chega o imperador, o que é algo singular. Além disso, os romanos não iam pôr uma coisa dessas em manuscrito. Um manuscrito se guarda; não se põe do lado de fora de uma gruta. Põe, ao menos, dentro da gruta. Ou seja, há uma inverosimilhança aí.

      A narração – podemos dizer – é sumamente inverossímil, é verdade. Mas, impossível não é. Quer dizer, se fôssemos negar a possibilidade desse fato, negaríamos toda a Religião Católica; negaríamos a possibilidade da ressurreição de Lázaro, acabaríamos negando a possibilidade da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.

      De maneira que, embora a narração seja muito inverossímil, embora não haja dados históricos provando que isso tenha sido assim e, portanto, se deva tomar como mais provável que isso não tenha sido assim, impossível absolutamente falando não é. Os elementos que compõem essa narração não estão provados. Porém, algo pode não ser impossível e não estar provado. Provado não está, nem um pouco. A “Legende Dorée” é um conjunto de tradições, mas aumentadas, adaptadas segundo a imaginação piedosa e popular de determinada época histórica, como todos nós sabemos.

      Feitas essas ressalvas, penso que o Santo do Dia não pode deixar de fixar o aspecto mais provável do assunto. Quer dizer, trata-se de uma lenda que esteja explorando algum fato que tenha um fundo histórico – isso é possível.

      Então, devemos imaginar qual é a mentalidade do povo que compôs essa lenda. Porque a “Légende Dorée” é uma obra coletiva, e não de uma só pessoa. Jacques de Voragine condensou e escreveu essas narrações num estilo maravilhoso. Mas, evidentemente, ele recolheu relatos que corriam, que se diziam etc. Os senhores podem então imaginar o que isso representa de sanidade mental, até nos últimos pormenores, de bom gosto e de tudo o mais.

      Em épocas em que não havia cinema, nem rádio, nem televisão, essas narrações eram a distração. E, naturalmente, como “quem conta um conto aumenta um ponto”, cada um dava sua contribuição aos relatos. Mas essas contribuições passavam, elas mesmas, por uma seleção também. As menos interessantes, que não eram de tão bom gosto, iam sendo depuradas; e o conto ia incorporando apenas os elementos mais bonitos, mais nobres, mais edificantes, que exprimem, por essa forma, a vontade de muitos narradores de que isso tivesse se passado assim. Manifestam deste modo seus ideais, sua mentalidade e seus anseios. E a esse título constituem a digna iluminura da alma de uma determinada época.

      Então, aqui os senhores têm – a título de iluminura – essa narração, a respeito da qual nos falta apenas observar alguns aspectos dela para completar o extremo pitoresco desse trecho.

      Os senhores estão vendo que se trata de sete jovens que resolveram – de acordo com a narração – subtrair-se nas suas casas e rezar pedindo para passar a perseguição, porque estavam muito pesarosos com ela e que o imperador Décio – pagão – havia desatado sobre o império.

      Pelo visto, esses rapazes podiam ser muito piedosos, mas não eram muito estratégicos, porque foram fazer essa penitência dentro de casa… E os senhores viram o que aconteceu: os elementos mundanos – ainda quando são os mais próximos – perseguem quando veem aos que seguem a virtude. Há um trecho da Escritura que diz que “os inimigos do homem são as pessoas de sua casa” (Mich. VII, 6; Mt. X, 36).

      Tomando o fato de um modo ou de outro, eles não foram muito previdentes, tendo sido denunciados ao imperador. Mas eles também não tiveram muito cuidado. Em pleno regime de suspensão, o imperador vê sete funcionários que deixam de aparecer no palácio de repente. Havia de desconfiar que se tratava de católicos. Mandou chamá-los, mas eles – e aqui entra a doutrina do eremismo – fugindo das feras, foram para o deserto. Tiveram medo da arena, e foram para o deserto. E o imperador soube que estavam lá, mas os encontrou adormecidos. Então, mandou murar…

      O que é esse “adormecidos”? No início da narração, tem-se a impressão de que estavam dormindo mesmo, e que foi murada a gruta. Mas depois se percebe que não, que houve uma ressurreição. O que é muito mais verossímil. Porque seria muito feio eles acordarem com duzentos anos, velhos, macróbios – quando adormeceram moços – e nenhum conhecer o outro, perceber que está velho, unhas compridas, barba, sujos… Isso não teria poesia nenhuma! Mas foi uma ressurreição. De maneira que acordaram suavemente dentro da gruta.

      É bonito este pormenor: logo que acordaram simultaneamente, se cumprimentaram. Os senhores observam o senso de cerimonial e da boa educação que está involucrado dentro da narração. Se sete de nossos contemporâneos ressuscitassem, as reações bem poderiam ser de dar pulos e dizer: “ó chapa! você também?” Umas coisas desse nível. Ali, não. A gente pode imaginar sete que se sentam, e que cerimoniosamente se cumprimentar e rezam. É uma outra atmosfera, um outro ambiente…

      Mas, curioso, é que eles não se tinham dado conta do tempo que havia passado. Então, seguem os vários episódios novelescos, muito bem relatados e aproveitados de um homem – explorando essa situação realmente teatral – que volta à sua própria cidade duzentos anos depois. A coisa está, literariamente, muito bem aproveitada.

      Os senhores estão vendo o homem que é conduzido a um bispo, o qual lhe faz perguntas que deveriam levantar muitas suspeitas: “Você, quem é? Esse dinheiro, de quem é?” – “Ah, de meu pai, que mora na rua tal”. Ninguém conhece esse homem. Duzentos anos, ele morreu. Até eles se darem conta – de acordo com a Legenda – de que foram ressuscitados, não teriam guardado memória do que aconteceu durante o período da morte, mas a impressão de que tinham dormido. Na gruta encontram os outros e então mandam chamar o imperador, que é atendido nas penitências que estava fazendo a fim de que a heresia, que negava a ressurreição dos mortos, fosse dizimada no império. Então, no fim, o imperador que agradece a Deus e a heresia sendo destruída.

      Qual é a grande e fundamental lição que está por detrás de tanto pitoresco e de tanta coisa encantadora que não se pode deixar de sorrir maravilhado com tanto frescor de alma? O que pode a oração e a penitência de um homem!

      O império todo devastado, mas o imperador, que o representava diante de Deus, era bom e queria, pois, manter a fé católica. E vendo que todos os meios para alcançar esse objetivo eram inúteis, porque a heresia já se tinha espalhado enormemente, recorre ao sobrenatural. Ele reza. Mas vai além: faz penitência no seu palácio, e, entretanto, não recebe nenhum sinal nem comunicação de Deus. E continua a fazer penitência… impávido, apesar do Céu parecer fechado.

      A penitência desse varão justo, desse grande imperador, desse homem cuja oração vale mais pelo império do que a dos outros – porque a prece ou a maldição do chefe de Estado pelo Estado vale muito mais do que a dos particulares, porque ele tem a missão oficial de representar o império junto a Deus e de Lhe fazer pedidos, em nome do império –, a oração desse imperador é de grande poder diante de Deus.

      A aflição do imperador termina quando vê chegar ao seu palácio um emissário do bispo que lhe avisa que um grande milagre foi praticado para atender sua súplica e ele próprio vai ver. É um imperador que compreende tão bem seu papel que se preocupa com as coisas espirituais mais do que com as temporais, e não para mandar nelas. Mas, como católico, concorrer para que as coisas espirituais andem bem; compreender que a glória de Deus está acima de tudo. Mas, em segundo lugar, que para o Império não há nada que lhe adiante e nada que lhe seja favorável se a heresia penetrar em seus domínios. Com a heresia, um Império está destruído. Pior do que uma invasão de bárbaros, do que qualquer outra coisa, é a disseminação de uma heresia.

      O imperador chega, então, à sepultura dos sete cristãos e os senhores podem imaginar a sua alegria, encontrando não um morto ressurrecto, mas sete mortos ressurrectos, que dão a prova cabal da autenticidade do milagre!

      Enfim, por toda a conversa deles, pelo que contam, a perseguição de Décio e, como pequena garantia, aquele manuscrito do lado de fora da gruta, que é para tranquilizar completamente o leitor e fazer entender que o imperador ficou convencido mesmo. É o “happy end” (final feliz) da legenda…!

      Os senhores observaram a gratidão do imperador e os sete que morrem logo depois. Que bonita coisa ver esses homens, ainda moços, na paz de Deus, rezando! Todos os sete expiram em série, e são sepultados na gruta, em série também.

      O imperador quer então lhes dar sepulturas de ouro. Mas vem um sinal do Céu indicando-lhe que não. Deus quer que aqueles corpos fiquem na terra. Ele transforma ali em local de veneração e o cobre de pedras douradas.

      Os senhores podem imaginar: terminadas as obras, o silêncio em torno da gruta, murada; todo mundo sabe que lá dormem sete santos; e as peregrinações que vão, de vez em quando, lá para rezar, e voltam de novo, diante da gruta resplandecente ao sol do meio-dia, com suas pedras de ouro… A gratidão do imperador Teodósio porque Deus ouviu suas orações com um estupendo milagre!

      Qual é o resultado? Dar aos fiéis uma grande vontade de rezar, uma grande confiança de recorrer a Deus. Porque se a oração de Teodósio foi tão ouvida, Deus, que ouve também os pequenos, pode ouvir a oração dos particulares. E os atende certamente. É um estímulo à oração! O que está dito ali é “façam penitência e rezem, que tudo se obterá”! É uma ilustração das palavras de Nosso Senhor no Evangelho: “pedi e dar-se-vos-á, batei e abrir-se-vos –á”. É uma bela lição da eficácia da prece.

Acima, iluminura de autor desconhecido ou “Frater Rufillus“ (Wikipedia)

      O que tirar disso para nós?

      Em primeiro lugar, a sensação de uma excursão através de um outro mundo; é fazer turismo para o passado. É uma forma de anacronismo sumamente criativo. É ir para um passado onde as coisas ainda se criavam – não criavam monstros como hoje – e ali respirar a plenos pulmões uma atmosfera que não é a do mundo de hoje. É alegrarmos a nossa alma vendo que houve tempo em que os espíritos e as mentalidades eram assim.

      Mas isso não basta…

      Quando a gente vê que houve tempo em que as mentalidades eram assim, nasce na nossa alma uma certeza: um dia serão de novo assim! E é a certeza da vinda do Reino de Maria! Não é possível que isso tenha ficado truncado, interrompido. Esse espírito de Jacques de Voragine é o da Idade Média. Esse espírito tem que vencer! E não desapareceu inteiramente. A prova disso é o nosso encantamento ao ouvir essa leitura.

      Em outros termos, se isso nos encanta tanto, é porque isso vive em nós, é porque fazemos parte do último relicário no qual se recolheu esse óleo ungido, esse óleo santo da tradição medieval, e onde arde a chama de nossa esperança!

      Há um provérbio que diz “quanto maior a altura, maior a queda”. Há um fator que é reversível em história – não sempre –, mas que quanto maior a queda, maior a altura! Quer dizer, se o mundo estava tão alto e caiu, só podia rolar muito baixo. Mas, uma vez que o mundo chegou tão baixo, só poderá se regenerar subindo mais alto ainda. Então nós temos a certeza do Reino de Maria.

      O Santo do Dia termina, portanto, com a certeza de que dia virá em que esse espírito – não do imperador Teodósio e desses sete santos adormecidos que aí figura um pouco colateralmente – de Jacques de Voragine, do medieval que gerou isso, esse espírito medieval voltará em grau mais elevado do que existira.

      É por isso que cantamos com convicção “Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat! Maria vincit, Maria regna, Maria imperat!” Quer dizer, Nossa Senhora vencerá mesmo! “Pedi e obtereis, batei e abrir-se-vos-á”. Precisamos fazer como o imperador Teodósio: precisamos pedir; precisamos fazer penitência. Uma das melhores formas de penitência é o apostolado. E, no apostolado, uma das melhores formas de penitência é vencer o respeito humano, sermos corajosos e nos ostentarmos como somos, digam os outros o que disserem!

      Precisamos fazer penitência, fazer apostolado, ser desassombrados, pedir muito. O Reino de Maria virá!

Fonte: Santo do Dia, 27-8-1973 – Os sete Santos ressuscitados e a beleza da mentalidade medieval (pliniocorreadeoliveira.info)

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Plinio Corrêa de Oliveira

Plinio Corrêa de Oliveira

551 artigos

Homem de fé, de pensamento, de luta e de ação, Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995) foi o fundador da TFP brasileira. Nele se inspiraram diversas organizações em dezenas de países, nos cinco continentes, principalmente as Associações em Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), que formam hoje a mais vasta rede de associações de inspiração católica dedicadas a combater o processo revolucionário que investe contra a Civilização Cristã. Ao longo de quase todo o século XX, Plinio Corrêa de Oliveira defendeu o Papado, a Igreja e o Ocidente Cristão contra os totalitarismos nazista e comunista, contra a influência deletéria do "american way of life", contra o processo de "autodemolição" da Igreja e tantas outras tentativas de destruição da Civilização Cristã. Considerado um dos maiores pensadores católicos da atualidade, foi descrito pelo renomado professor italiano Roberto de Mattei como o "Cruzado do Século XX".

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