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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Cachoeiras e Sonolência


Em recente visita aos meus alfarrábios, encontrei um conto interessante, que passo a resumir para o prezado leitor.

Depois de observarem atentamente o comportamento noturno de uma pequena cidade, dois ladrões discutiram as possibilidades de êxito para o assalto. Como todas as casas tinham cachorros, o primeiro ladrão objetou que o da casa acordaria o dono. Mesmo se agissem cautelosamente, eles não teriam escapatória. O outro, mais experiente e atento à psicologia, afirmou que o latido do cachorro seria ótimo para o assalto. Ante a surpresa do comparsa, explicou:

— Quando o cachorro da casa latir, os da vizinhança vão acompanhar. Os policiais não terão como descobrir o local do assalto, pois haverá cães latindo em todas as casas. Os latidos vão até ajudar, abafando os ruídos que fizermos.

Concordaram que a ideia era genial, acertaram os detalhes da investida, e logo confirmaram que a confraria canina latia pra valer. Tudo corria bem, e eles nem se preocuparam mais com os ruídos que faziam. Aos poucos os cachorros foram parando de latir. Depois de alguns minutos chegou a polícia e os flagrou com a mão na massa. A caminho da delegacia, não conseguiam entender o que dera errado, e por quê. Perguntaram, e o policial explicou:

— Vocês não são os primeiros. Acontece que todos aqui estão acostumados com o latido dos cachorros, e continuam dormindo. Mas para o nosso trabalho, basta observar onde está o primeiro cachorro que parou de latir. Os outros vão parando de acordo com a proximidade, na mesma ordem em que começaram. Não dá para errar, nós sempre achamos o local do assalto.

Não sei se na prática as coisas funcionam exatamente assim, mas interessa-me o fenômeno de início e fim da sinfonia canina. Cabe ao primeiro cachorro despertar o dono da casa. Neste caso ele age como o spala de uma orquestra, e num crescendo esta atinge o seu tutti. Se o dono da casa não liga, o cachorro toma os intrusos como amigos, silencia seu instrumento vocal, e todos os outros o vão acompanhando. Se non è vero, è bene trovato, e isso me basta para fustigar certo tipo de cachorros.

(Por quê?! Que culpa têm os cachorros? Você parece perseguidor de cachorros)

Os cachorros não têm culpa. Estão ali para latir, e cumprem sua tarefa. De quem é então a culpa? Sua, meu caro leitor. Não, não adianta interromper a leitura e fugir de fininho, com ares de ofendido, porque a coisa é assim mesmo. Quer que eu explique?

Examine bem os fatos. Sendo o dono da casa, você compra um cachorro bravo para que o latido dele o acorde quando se apresente o intruso. O cachorro late o quanto pode, consegue até a ajuda prestimosa dos outros. Se você não acorda, ou volta a dormir depois que acordou, é sinal de que achou tudo normal. O cachorro cumpriu o seu papel, e a culpa só pode ser sua.

Entendeu bem o raciocínio? Pois então vamos a uma aplicação concreta.

Algum tempo atrás, a imprensa passou a divulgar o “caso Cachoeira”. Falou-se tanto de cachoeira, com tantas novidades diárias, tantos comentários, tanta piada para todos os gostos – uma verdadeira sinfonia canina anti-cachoeira – que aos poucos as pessoas ficaram saturadas, desinteressadas, sonolentas. Tanta insistência em cachoeira tornou irritante qualquer alusão a água escorrendo – queda d’água, enxurrada, cascata, corredeira, torneira aberta – servindo de sinal para a imprensa silenciar sobre isso e mudar de assunto. Aos poucos a mídia parou de matraquear, e o distinto público foi esquecendo cachoeiras e escândalos. Não se viu uma solução adequada para as irregularidades, mas a gritaria acabou e tudo voltou aparentemente ao normal.

A propósito, o que foi feito do tal Cachoeira? Não sabe? Eu também não sei. Nem o pessoal da imprensa, tão zeloso em divulgar as cachoeirices, provavelmente não saberá informar-nos de pronto, sem consultar algum arquivo ou outras fontes jornalísticas. Transfira esses dados para mensalão, Celso Daniel, lava-jato, petrolão…

Uma sequência de fatos “cachoeirável”, como qualquer uma dessas, será sempre motivo para alardes. Se deixamos de nos importar com a gritaria e com o que continua acontecendo, manifestamos assim nossa tácita anuência. A imprensa cumpriu o seu papel, pelo menos enquanto o assunto dava ibope. Mas não reclamamos quando pararam de nos alertar, e assim contribuímos para os interessados arquivarem o assunto. Não cumprindo nosso dever, não reclamando, não protestando, temos que aguentar as consequências. E os cachoeiras da vida nos agradecem.

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Jacinto Flecha

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Jacinto Flecha, médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.

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