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9 min — há 9 anos — Atualizado em: 8/30/2017, 9:45:52 PM
No dia seguinte ao XIV Sínodo sobre a família, todos parecem ter vencido: o Papa Francisco, porque conseguiu arquitetar um texto de compromisso entre as posições opostas; os progressistas, porque o texto aprovado admite os divorciados recasados à Eucaristia; os conservadores, porque o documento não contém uma referência explícita à comunhão para os divorciados e rejeita o “casamento homossexual” e a teoria de gênero.
A fim de se compreender melhor como as coisas realmente se passaram, cumpre começar pela noite de 22 de outubro, quando foi entregue aos Padres sinodais o relatório final elaborado por uma comissão ad hoc com base nas emendas (modi) ao Instrumentum laboris propostas pelos grupos de trabalho divididos por idiomas (circuli minores).
Para grande surpresa dos Padres sinodais, o texto entregue a eles nessa quinta-feira estava apenas em língua italiana, com proibição absoluta de comunicá-lo não somente à imprensa, mas também aos 51 auditores e aos outros participantes da assembleia. O texto não levava em nenhuma conta as 1355 emendas sugeridas ao longo das três semanas anteriores e substancialmente propunha de volta a validação do Instrumentum laboris, inclusive dos parágrafos que tinham suscitado as críticas mais fortes na aula sinodal: aquele sobre a homossexualidade e o dos divorciados recasados.
A discussão foi marcada para a manhã seguinte, com a possibilidade de preparar novas emendas apenas à noite, em um texto apresentado numa língua dominada apenas por uma parte dos Padres sinodais. Mas, na manhã de 23 de outubro o Papa Francisco, que sempre acompanhou de perto os trabalhos, viu-se confrontado a uma inesperada rejeição do documento elaborado pela comissão. Nada menos que 51 Padres sinodais intervieram no debate, a maioria deles contra o texto aprovado pelo Santo Padre. Entre estes estavam os cardeais Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos; Angelo Bagnasco, presidente da Conferência Episcopal Italiana; Jorge Urosa, arcebispo de Caracas; e Carlo Caffara, arcebispo de Bolonha; os arcebispos Joseph Edward Kurtz, presidente da Conferência Episcopal norte-americana; Stanislaw Gadecki, presidente da Conferência Episcopal polonesa; Ignace Stankevics, arcebispo de Riga; Tadeusz Kondrusiewicz, arcebispo de Minsk-Mohilev; e Henryk Hoser, arcebispo-bispo de Varsóvia-Praga; os bispos Ignace Bessi Dogbo, de Katiola (Costa do Marfim), HLib Borys Sviatoslav Lonchyna, bispo da eparquia ucraniana da Sagrada Família de Londres, e muitos outros, todos expressando, em diferentes tons, o seu desacordo com o texto.
O mesmo documento não podia obviamente ser apresentado de novo na aula sinodal no dia seguinte, pois arriscava não obter a maioria e produzir um forte racha. A solução de compromisso foi encontrada seguindo o caminho delineado pelos teólogos do “Gemanicus”, o círculo que incluía o cardeal Kasper, ícone do progressismo, e o cardeal Müller, prefeito da Congregação da Fé. Entre sexta à tarde e sábado de manhã a comissão elaborou um novo texto, que foi lido na aula na manhã de sábado 24, e em seguida votado no período da tarde, obtendo para cada um dos seus 94 parágrafos a maioria qualificada de dois terços, que era de 177 votos entre os 265 Padres sinodais presentes.
Na coletiva de sábado, o cardeal Schönborn havia antecipado o teor do texto no ponto mais controvertido, o dos divorciados recasados: “Fala-se disso. Fala-se disso com grande atenção, mas a palavra-chave é ‘discernimento’, e convido todos a pensar que [nesse assunto] não há um branco ou preto, um simples sim ou não; é preciso discernir, e este é precisamente o ensinamento de S.S. João Paulo II na Familiaris consortio: a obrigação de exercer um discernimento, porque as situações são diferentes e o Papa Francisco, bom jesuíta, aprendeu a necessidade desse discernimento quando jovem: discernimento é tentar descobrir qual é a situação de tal casal ou de tal pessoa.”
Discernimento e integração é o título dos números 84, 85 e 86. O parágrafo mais controverso, o nº 85, que fundamenta a abertura aos divorciados recasados e a possibilidade de eles receberem os sacramentos – embora sem mencionar explicitamente a comunhão –, foi aprovado por 178 votos a favor, 80 contrários e sete abstenções. Só um voto acima do quórum de dois terços.
A imagem do Papa Francisco não saiu reforçada, mas empanada e enfraquecida no fim da assembleia dos bispos. O documento que ele havia aprovado foi de fato abertamente rejeitado pela maioria dos Padres sinodais na manhã do dia 23, o seu “dia negro”. O discurso de encerramento do Papa Bergoglio não manifestou nenhum entusiasmo pela Relatio final, mas uma reiterada repreensão aos padres sinodais que tinham defendido as posições tradicionais. Por isso, entre outras coisas, disse o Papa na noite de sábado: “Encerrar este Sínodo […] significa também que espoliamos os corações fechados que, frequentemente, se escondem mesmo por detrás dos ensinamentos da Igreja ou das boas intenções para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas. […] Significa que procuramos abrir os horizontes para superar toda a hermenêutica conspiradora ou perspectiva fechada, para defender e difundir a liberdade dos filhos de Deus, para transmitir a beleza da Novidade cristã, por vezes coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente incompreensível.” Palavras duras, que exprimem amargura e insatisfação: certamente não as de um vencedor.
Também foram derrotados os progressistas, não apenas por ter sido removida toda referência positiva à homossexualidade, mas porque a abertura aos divorciados recasados é muito menos explícita do que eles teriam desejado. Mas os conservadores não podem cantar vitória. Se 80 padres sinodais, um terço da assembleia, votaram contra o parágrafo 85, isso significa que ele não era satisfatório. E o fato de esse parágrafo ter passado por um voto não elimina o veneno que ele contém.
De acordo com a Relatio finale, a participação dos divorciados recasados na vida da Igreja pode expressar-se em “serviços diversos”: deve-se, portanto, “discernir quais das diversas formas de exclusão atualmente praticadas no âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional podem ser superadas. Eles não estão e não devem sentir-se excomungados e podem viver e crescer como membros vivos da Igreja” (nº 84); “o percurso de acompanhamento e discernimento orienta estes fiéis a serem conscientes da sua situação perante Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação de um julgamento correto acerca do que obstaculiza a possibilidade de uma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que podem favorecê-la e fazê-la crescer” (nº 86).
Mas o que significa ser “membros vivos” da Igreja, senão encontrar-se em estado de graça e receber a Sagrada Comunhão? E a “participação mais plena na vida da Igreja” não inclui, para um leigo, a participação no sacramento da Eucaristia? Diz-se que as formas de exclusão atualmente praticadas no âmbito litúrgico, pastoral, educacional e institucional podem ser superadas “caso por caso”, seguindo uma “via discretionis”. Pode ser superada a exclusão da comunhão sacramental? O texto não o afirma, mas não o exclui. A porta não está escancarada, mas entreaberta, e, portanto, não há como negar que esteja aberta.
A Relatio não postula um direito dos divorciados recasados de receber a Comunhão (e, portanto, um direito ao adultério), mas nega de fato à Igreja o direito de definir publicamente como adultério a situação objetiva dos divorciados recasados, deixando a responsabilidade dessa avaliação à consciência dos pastores e dos próprios divorciados recasados. Para retomar a linguagem da Dignitatis Humanae, não se trata de um direito “afirmativo” ao adultério, mas de um direito “negativo” de não ser impedido de praticá-lo, ou de um direito à “imunidade de coerção em matérias morais”. Como na Dignitatis Humanae, é cancelada a distinção fundamental entre o “foro interno”, que diz respeito à salvação eterna dos fiéis, e o “foro externo”, relativo ao bem público da comunidade dos fiéis. A comunhão na verdade não é apenas um ato individual, mas um ato público perante a comunidade dos fiéis. A Igreja, sem entrar no foro interno, sempre proibiu a comunhão dos divorciados recasados, por tratar-se de pecado público, cometido no fórum externo. A lei moral fica absorvida pela consciência que se torna um novo locus, não só teológico e moral, mas canônico. A Relatio finalis integra-se bem, sob este aspecto, nos dois motu proprio do Papa Francisco, cujo significado o historiador da escola de Bolonha [NdT.: Alberto Melloni] salientou no “Corriere della Sera” de 23 de outubro: “Restituindo aos bispos o julgamento sobre a nulidade, Bergoglio não mudou o status dos divorciados, mas fez um enorme ato de reforma do papado”.
A atribuição ao bispo diocesano da faculdade, como único juiz, de instruir discricionariamente um processo sumário e de chegar à sentença definitiva é análoga à atribuição ao bispo do discernimento sobre a condição moral do divorciados recasados. Se o bispo local considerar que chegou ao termo o caminho de crescimento e de aprofundamento espiritual de uma pessoa que vive em uma nova união, esta poderá receber a comunhão.
O discurso do Papa Francisco de 17 de outubro ao Sínodo indica na “decentralização” a projeção eclesiológica da moral do “caso por caso”. O Papa afirmou depois, em 24 de outubro, que, “sem entrar nas questões dogmáticas, bem definidas pelo Magistério da Igreja – que aquilo que parece normal para um bispo de um continente, pode resultar estranho, quase um escândalo – quase! –, para o bispo doutro continente; aquilo que se considera violação de um direito numa sociedade, pode ser preceito óbvio e intocável noutra; aquilo que para alguns é liberdade de consciência, para outros pode ser só confusão. Na realidade, as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral – como disse, as questões dogmáticas bem definidas pelo Magistério da Igreja – cada princípio geral, se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado”.
A moral da inculturação, que é a do “caso por caso”, relativiza e dissolve a lei moral, que é por definição absoluta e universal. Não existe nenhuma boa intenção ou circunstância atenuante capaz de transformar um ato mau em bom. A moral católica não admite exceções: ou é absoluta e universal, ou não é uma lei moral. Portanto, não estão errados os jornais que apresentaram a Relatio finale com este título: “Cai a proibição absoluta da comunhão para os divorciados recasados”.
A conclusão é que estamos lidando com um documento ambíguo e contraditório, que permite a todos cantar vitória, embora ninguém tenha vencido. Todos foram derrotados, a começar pela moral católica, que sai profundamente humilhada do Sínodo sobre a família concluído em 24 de outubro (Roberto de Mattei).
Roberto De Mattei
73 artigosEscritor italiano, autor de numerosos livros, traduzidos em diversas línguas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja. Professor de História Moderna e História do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, conferencista, escritor e jornalista, Roberto de Mattei é presidente da Fondazione Lepanto. Entre 2004-2011 foi vice-presidente do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália. Autor da primeira biografia de Plinio Corrêa de Oliveira, intitulada “O Cruzado do Século XX”. É também autor do best-seller “Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita”.
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