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Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo

Considerações sobre alguns desvios teológicos de Desiderio desideravi – Documento de Francisco sobre a Missa

Por José Antonio Ureta

47 minhá 2 anos — Atualizado em: 9/16/2022, 7:31:24 PM


Na festa de São Pedro e São Paulo, o Papa Francisco publicou a exortação apostólica Desiderio desideravi 

Na festa de São Pedro e São Paulo, o Papa Francisco publicou a exortação apostólica Desiderio desideravi (“Tenho desejado ardentemente”, Lc 22, 15) “sobre a formação litúrgica do povo de Deus”. Os comentários à exortação nos meios tradicionalistas limitaram-se até agora a lamentar a reiteração da tese de que a Missa de Paulo VI é a única forma do Rito Romano, além de negar que o novo ordinário da Missa seja uma tradução fiel dos desejos de reforma expressos pelos Padres conciliares na Constituição Sacrosanctum Concilium.

Não chegou ao meu conhecimento nenhuma crítica teológica dos princípios desenvolvidos pelo Papa Francisco em sua meditação sobre a liturgia. Vejo até com preocupação que alguns artigos, ao mesmo tempo que condenam as duas falhas de Desiderio desideravi acima mencionadas, dão a entender que se seus princípios e alguns dos comentários do Papa fossem colocados em prática nas paróquias, o resultado seria positivo.

Necessidade de um exame cuidadoso

“Na verdade, grande parte das recomendações litúrgicas do Papa Francisco podem ser lidas como uma bandeira de batalha para o tradicionalismo litúrgico”, escreve um proeminente líder tradicionalista, que acrescenta, depois de citar alguns trechos da exortação sobre a riqueza da linguagem simbólica:

“Se os responsáveis pela liturgia diocesana levassem a sério essas declarações, veríamos uma transformação universal da liturgia católica, em uma direção tradicional” [1]

Os sacerdotes bi-ritualistas da diocese de Versalhes que animam o Padreblog afirmam, por sua vez, que “muitos elementos da carta têm em comum o fato de não serem específicos do missal de 1962 ou do missal de 1970”, para concluir que “o melhor do missal de São Pio V encontrará naturalmente o seu lugar no aprofundamento litúrgico solicitado pelo Santo Padre” [2].

Mediator Dei de Pio XII

Um conhecido capelão, pertencente a uma comunidade Ecclesia Dei, parece ser da mesma opinião, pois no final de um sermão recente sugeriu passar por cima do desagrado produzido pelo parágrafo 31 da Desiderio desideravi e aproveitar as férias de verão europeias para se nutrir espiritualmente com a leitura do documento papal.

Temendo que essa atitude benevolente se difunda na mídia tradicionalista, pretendo mostrar nos parágrafos seguintes os desvios doutrinários que, na minha modesta opinião, salpicam as meditações do Papa Francisco sobre a liturgia, desvios que resultam da nova orientação teológica assumida pela constituição Sacrosanctum Concilium do Vaticano II.

Fá-lo-ei comparando a visão da liturgia que foi ensinada no último documento pré-conciliar sobre o assunto, ou seja, a encíclica Mediator Dei de Pio XII, com a que emerge de Desiderio desideravi. A conclusão será que esta última merece, pelo menos, a crítica feita pelo cardeal Giovanni Colombo à Gaudium et Spes, a saber, que “esse texto tem todas as palavras certas; são os acentos que estão mal colocados”. [3]

Infelizmente, o que os leitores podem ver no recente texto do Papa são mais os acentos errados do que as palavras certas…

A comparação entre a visão de Pio XII e a de Francisco será sobre quatro pontos específicos: 1) a finalidade do culto litúrgico; 2) o mistério pascal como centro da celebração; 3) o caráter memorial da Santa Missa; 4) a presidência da assembleia litúrgica.

1. Uma descrição desequilibrada do culto

Objetivo principal da liturgia: prestar homenagem ao Deus Uno e Trino

Mediator Dei [4] estabelece com uma clareza solar que o culto católico contém dois propósitos principais que se entrecruzam e se sustentam: a glória de Deus e a santificação das almas. Mas a primazia corresponde à homenagem ao Criador.

Depois de explicar que o “dever fundamental do homem é certamente este de orientar a si mesmo e a própria vida para Deus”, reconhecendo Sua majestade suprema e dando-Lhe “pela virtude da religião, o devido culto” (n° 11), Pio XII recorda que a Igreja o faz continuando a função sacerdotal de Jesus Cristo (nº 2-3), e conclui com a seguinte definição:

“A sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o nosso Redentor rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da cabeça e de seus membros” (n° 17).

Mesmo o fim subsidiário (e, de fato, primário de outro ponto de vista) de santificar as almas tem como objetivo último a glória de Deus: “Tal é a essência e a razão de ser da sagrada liturgia. Ela cuida do sacrifício, dos sacramentos e do louvor a Deus; da união das nossas almas com Cristo e da santificação por meio do divino Redentor, a fim de ser honrado Cristo e, por ele e nele, a Santíssima Trindade. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” (n° 156).

Por influência dos teólogos do chamado Movimento litúrgico, cujas ideias foram recolhidas na constituição conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia, essa relação entre a glorificação de Deus e santificação das almas na liturgia foi invertida.

A inversão sistemática dos fins do culto

Pe. Juan Manuel Martín-Moreno, teólogo jesuíta, de orientação progressista.

O teólogo jesuíta Pe. Juan Manuel Martín-Moreno, de orientação progressista, explica de forma pedagógica em suas Notas sobre a Liturgia [5] para o curso que ministrou na Pontifícia Universidade de Comillas (da Companhia de Jesus) nos anos 2003-2004:

“Sempre se reconheceu uma dupla dimensão ao ato litúrgico. Por um lado, tem como objetivo a glorificação de Deus (dimensão ascensional ou anabática) e por outro lado é a salvação e santificação dos homens (dimensão descendente ou catabática). […]

“A teologia litúrgica anterior ao Vaticano II partiu do conceito de culto concebido anabaticamente. A liturgia era principalmente a glorificação de Deus, o cumprimento da obrigação que a Igreja tem como sociedade perfeita de prestar adoração pública a Deus, atraindo assim suas bênçãos.

“Pelo contrário, para o Vaticano II prevalece a dimensão descendente. A Trindade divina se manifesta na Encarnação e na Páscoa de Cristo. O Pai dando Seu Filho ao mundo na Encarnação, e Seu Espírito na plenitude da Páscoa, Ele comunica sua comunhão trinitária como um dom. Este duplo dom da Palavra e do Espírito nos é dado no serviço litúrgico para a nossa libertação e santificação. […]

“A concepção anabática da liturgia estava centrada no serviço do homem a Deus, enquanto a concepção catabática se concentra no serviço oferecido por Deus aos homens. A crítica ao culto, entendido como serviço do homem a Deus, baseia-se no fato de que efetivamente Deus não precisa desses serviços do homem. […]

“Se a liturgia fosse basicamente adoração, seria supérflua. Mas se a liturgia é o modo de o homem entrar em posse da salvação de Deus, a maneira pela qual a ação salvífica se torna realmente presente aqui e agora para o homem, é claro que o homem continua necessitando da liturgia” [6].

De fato, a dimensão catabática também tem o propósito anabático de conduzir os homens a Deus e de os fazer glorificá-Lo. Vale lembrar que a opinião de que “a liturgia […] seria supérflua” se fosse “basicamente adoração”, eliminaria de fato a maior parte do conteúdo dos ritos cristãos tradicionais, orientais e ocidentais, como se a Igreja Católica estivesse errada sobre a natureza do culto divino durante a maior parte de sua história.

O Papa Francisco adota essa inversão

Em Desiderio desideravi [7], o Papa Francisco destaca de modo quase exclusivo essa concepção essencialmente catabática da liturgia, deixando na sombra a glorificação de Deus, que para Pio XII é o seu elemento primordial.

Sua meditação começa com as palavras iniciais do relato da Última Ceia — “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco” —, ressaltando que elas nos dão “a surpreendente possibilidade de intuir a profundidade do amor das pessoas da Santíssima Trindade por nós” (n° 2). “O mundo não sabe, mas todos estão convidados para a ceia das bodas do Cordeiro (Ap 19, 9)” (n° 5), acrescenta o Pontífice.

No entanto, “Antes de nossa resposta ao seu convite — bem antes! — há o desejo dele por nós. Podemos até não estar cientes disso, mas toda vez que vamos à Missa, a primeira razão é que somos atraídos por seu desejo por nós” (n. 6). A liturgia, portanto, é antes de tudo o lugar do encontro com Cristo, porque ela “nos garante a possibilidade de tal encontro” (n° 11).

O significado catabático e descendente da liturgia — entrar em posse da salvação — está muito bem ressaltado. Mas foi inteiramente omitido o fato, salientado por Pio XII no texto já citado, de que a primeira função sacerdotal de Cristo é adorar o Pai Eterno em união com seu Corpo Místico.

Essa unilateralidade é reforçada em outro parágrafo que trata em particular do aspecto ascendente anabático, isto é, da glorificação da divindade pelos fiéis reunidos. Esse texto insinua que a glória de Deus é secundária, na medida em que nada acrescenta à que Ele já possui no Céu, enquanto o que realmente conta é Sua presença na Terra e a transformação espiritual que produz:

“A Liturgia dá glória a Deus não porque possamos acrescentar algo à beleza da luz inacessível em que Deus habita (cf. 1Tm 6,16). Tampouco podemos acrescentar [algo] à perfeição do canto angélico que ressoa eternamente pelos lugares celestiais. A liturgia dá glória a Deus porque nos permite — aqui, na terra — ver Deus na celebração dos mistérios, e ao vê-lo tirar vida da sua Páscoa. Nós, que estávamos mortos por nossos pecados e fomos vivificados novamente com Cristo — nós somos a glória de Deus” (n° 43).

As palavras são corretas, porque é verdade que o homem acrescenta a Deus uma glória dificilmente “acidental”, porém foi o próprio Deus que a quis receber dele ao criá-lo. Mas os acentos, por sua unilateralidade, levam os fiéis a uma posição errada, que facilmente pode degenerar em culto ao bezerro de ouro, ou seja, “uma festa que a comunidade cria por si mesma; ao celebrá-la, a comunidade nada mais faz que se confirmar a si própria”, atitude denunciada em seu tempo pelo então Cardeal Joseph Ratzinger[8].

2. Descentralização da Missa da Paixão Redentora

O mistério pascal como centro da celebração

Na encíclica Mediator Dei, Pio XII sublinha a centralidade da Paixão na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e em nossa redenção (doravante, todos os destaques em negrito são nossos):

“A sagrada liturgia, ademais, nos propõe todo o Cristo, nos vários aspectos de sua vida; isto é, Cristo que é Verbo do Eterno Pai, que nasce da virgem Mãe de Deus, que nos ensina a verdade, que cura os enfermos, que consola os aflitos, que sofre, que morre; que, enfim, ressurge triunfante da morte; que, reinando na glória do céu, nos envia o Espírito Paráclito e vive sempre na sua Igreja: ‘Jesus Cristo ontem e hoje: ele por todos os séculos’ (Hb 13,8) E, além disso, não no-lo apresenta somente como um exemplo a imitar, mas ainda como um mestre a ouvir, um pastor a seguir, como mediador da nossa salvação, princípio da nossa santidade e Cabeça mística de que somos membros, vivendo da sua própria vida.

“E assim como as suas acerbas dores constituem o mistério principal de que provém a nossa salvação, é conforme às exigências da fé católica, colocar isto na sua máxima luz, porque é como o centro do culto divino, por ser o sacrifício eucarístico a sua cotidiana representação e renovação, e estarem todos os sacramentos unidos com estreitíssimo vínculo à cruz” (n°s 148-149).

Pio XII se refere anteriormente aos propósitos do sacrifício eucarístico (adoração, ação de graças, propiciação e impetração). Descrevendo o terceiro propósito, o Papa Pacelli destaca mais uma vez o papel da Paixão e Morte do divino Redentor, resumindo em poucas linhas a doutrina de Santo Anselmo sobre a expiação vicária de Jesus Cristo na cruz:

“O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz em ‘propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo’ (1Jo 2, 2)” (n° 66).

E reitera esse ensinamento tradicional ao descrever o fruto do sacrifício divino, citando Santo Agostinho: “Os infinitos e imensos méritos desse sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. ‘Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; …derramou o seu sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de Deus… Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o mundo’ (S. Agostinho, Enarr. in Ps,147, n.16)” (n° 69).

REINTERPRETANDO A REDENÇÃO POR MEIO DA RESSURREIÇÃO

Essa insistência na centralidade do sacrifício da cruz para a Redenção da humanidade foi uma resposta às elucubrações dos teólogos mais radicais do Movimento litúrgico, que já naquela época a colocaram na sombra para salientar o triunfo e ressurreição de Cristo e seu presente estado glorioso. O jesuíta Juan Manuel Martín-Moreno nos servirá novamente de guia para esclarecer a mudança de acento introduzida pelos inovadores:

“A teologia ocidental está em vias de se libertar desse modelo anselmiano de redenção, que afetou tão negativamente a liturgia. Na verdade, a salvação foi de fato uma iniciativa do Pai, que já nos amava quando ainda éramos pecadores (Rm 5,10). Foi uma iniciativa do Pai enviar-nos seu Filho Salvador como cabeça de uma nova Humanidade. Jesus não morreu porque Ele mesmo buscou a morte, nem porque o Pai a exigisse. O Pai não O enviou para morrer, mas para viver. A ação do Pai não consiste em matar seu Filho, mas em ressuscitá-lo, aceitar sua oferta amorosa. […]

“A forma cruel como Jesus sofreu sua morte não é consequência de um destino inelutável fixado por Deus Pai, mas é uma consequência da crueldade dos homens, que não podiam tolerar a presença dos justos no meio deles.

“Quando dizemos que Jesus morreu ‘pelos nossos pecados’, queremos dizer que Ele morreu porque a humanidade pecadora não pôde deixar de matá-Lo. Morreu porque éramos pecadores. Se tivéssemos sido justos, nunca O teríamos matado e Jesus não teria sofrido essa morte. Não é o Pai que quer a morte de Jesus na cruz, mas a humanidade pecadora.

“Jesus morre porque foi fiel à linha de conduta que Lhe foi traçada, mostrando-nos a verdadeira face do Pai. Nesse sentido podemos dizer que Ele morreu para o cumprimento da vontade de Deus. […]

“Porque morreu no cumprimento da sua missão e assumiu a nossa natureza humana até as suas últimas consequências morrendo com uma morte semelhante à nossa, é por isso que a humanidade de Jesus foi ressuscitada pelo Pai. Com isso também abriu para todos nós a porta da ressurreição e da vida eterna. […] Nossa salvação é o efeito de sua encarnação, sua vida, sua morte, sua ressurreição e doação de seu Espírito” [9].

Não poderia ser mais claro: a porta da ressurreição e da vida eterna nos teria sido aberta não tanto pelo sangue derramado na cruz, mas porque a humanidade de Jesus foi ressuscitada pelo Pai.

Essa mudança de paradigma, descrita pelo Pe. Martín-Moreno, deixou de ser mera especulação de teólogos para passar às cátedras eclesiásticas já no período de elaboração do esquema prévio da Constituição sobre a liturgia, mesmo antes do início da primeira sessão conciliar. O título original do capítulo sobre a eucaristia, aprovado em 10 de agosto de 1961, era De sacro santo Missae sacrificio; mas na sessão de 15 de novembro do mesmo ano se tornou De sacro santo Eucharistiae mistério [10].

COMO ESSA PERSPECTIVA ENTROU NA CONSTITUIÇÃO CONCILIAR SOBRE A LITURGIA

No início dos debates sobre o referido esquema prévio, o único que por seu caráter inovador voluntariamente moderado [11] não foi rejeitado, mas alterado, Dom Henri Jenny — então Bispo auxiliar de Cambrai, membro da comissão preparatória sobre a liturgia e mais tarde membro do Concilium que elaborou a Missa Nova — observou que faltava no esquema o essencial: uma doutrina sobre o mistério da liturgia.

Foi então constituída uma subcomissão que elaborou o primeiro capítulo da Sacrosanctum Concilium [12], cujo conteúdo se tornou o núcleo doutrinário não só dessa constituição conciliar, mas também da reforma litúrgica de Paulo VI e de todo o magistério pós-conciliar sobre a liturgia.

Aquele primeiro capítulo da Sacrosanctum Concilium dilui a centralidade da morte na cruz em todo o “mistério pascal”: “Esta obra da redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, em que ‘morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida’ (Missal Romano, Prefácio pascal). Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja” (n° 5).

Não há dúvida de que a expressão paschale sacramentum (isto é, “mistério pascal”) é frequente nos textos dos Padres da Igreja e nas orações do missal tradicional. Mas em todos eles a expressão foi compreendida dentro da concepção da Redenção como um resgate operado principalmente pelo Sangue derramado na Paixão e Morte do Salvador (ver, por exemplo, a oração de Sexta-feira Santa: “Lembrai-Vos das vossas misericórdias, Senhor; santificai e protegei sempre os vossos servos, para os quais Jesus Cristo vosso Filho instituiu no seu Sangue o mistério pascal” — per suum cruorem, instituit paschale mysterium).

Enquanto em sua acepção moderna o mistério pascal passou a ser entendido principalmente como a plena revelação do amor do Pai, que se exprime sobretudo na Ressurreição de Jesus: “Quando passamos da redenção ao mistério pascal, a ênfase muda completamente. Quem fala de redenção pensa primeiro em Paixão e depois na ressurreição como complemento. Quem fala de Páscoa pensa primeiro em Cristo ressuscitado” [13], escreveu o dominicano Aimon-Marie Roguet em um artigo que marcou época, publicado pela revista Maison-Dieu, bastião parisiense do Movimento litúrgico.

O Papa Francisco minimiza a morte redentora de Cristo

É justamente essa tônica unilateral a favor da Páscoa em detrimento da Paixão — contrária ao equilíbrio tradicional — que transparece em todos os poros da Desiderio desideravi. O documento não usa uma só vez as palavras “Redenção”, “resgatar”, que evocam a libertação do pecado mediante o pagamento de uma dívida. Usa sempre “salvação”, que não tem essa conotação, e a associa preferencialmente à Páscoa, citada nada menos que 29 vezes ao longo do texto, enquanto a Ressurreição é mencionada 14 vezes e a morte do Senhor apenas seis vezes.

A própria definição que ele oferece da liturgia sofre dessa parcialidade. Para Francisco, é “o sacerdócio de Cristo, revelado a nós e dado no seu mistério pascal, tornado presente e ativo por meio de sinais dirigidos aos sentidos (água, óleo, pão, vinho, gestos, palavras), para que o Espírito, mergulhando-nos no mistério pascal, transforme todas as dimensões da nossa vida, conformando-nos cada vez mais a Cristo” (n° 21).

E falando sobre o respeito devido às rubricas, diz que é preciso não roubar à assembleia o que lhe corresponde, “ou seja, o mistério pascal celebrado de acordo com o ritual que a Igreja estabelece” (n° 23), o que deve causar assombro nos participantes, descrito como ficar “maravilhado pelo fato de o desígnio salvífico de Deus se ter revelado no ato pascal de Jesus (cf. Ef 1,3-14), e a força deste ato pascal continua a chegar até nós no celebração dos ‘mistérios’, dos sacramentos” (nº 25).

Mais adiante, afirma que “a ação da celebração é o lugar em que, por meio do memorial, o mistério pascal se torna presente para que os batizados, por meio de sua participação, possam experimentá-lo em sua própria vida”(n° 49).

O risco com essa mudança de ênfase é de que a fé dos fiéis — ou antes, o pouco que resta dela — pode ser deformada em duas dimensões. De um lado, podemos ser levados a pensar que a obra da salvação deve ser atribuída mais ao Pai e ao Espírito Santo do que a Jesus, Verbo Encarnado filho de Maria, que derramou seu sangue pelos nossos pecados.

De outro lado, poderíamos ser levados a pensar que Jesus Cristo não é exatamente o Redentor, mas o “lugar” em que Deus nos salva, pois é na Páscoa de Cristo que o amor do Pai nos é revelado.

Também a piedade dos fiéis pode ser levada a desvalorizar todas as devoções tradicionais que os encorajam a expiar seus pecados e os da humanidade, induzindo-os a se julgarem salvos apenas pela fé no desígnio salvífico de Deus, sem completar na sua carne “o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Col1, 24); ou, pior ainda, acreditar em uma salvação universal por causa da aliança indefectível de Deus com a raça humana.

3. Da renovação do sacrifício do Calvário ao memorial da presença

A Santa Missa é um verdadeiro e próprio sacrifício

Ao tratar do sacrifício eucarístico, a Mediator Dei reitera o ensinamento do Concílio de Trento no sentido de que a Santa Missa é um sacrifício próprio e verdadeiro, e não apenas um memorial da Paixão ou da Última Ceia:

“O Cristo Senhor, ‘sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque’ (Sl 59,4), ‘tendo amado os seus que estavam no mundo’ (Jo 13,1), ‘na última ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos […] ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que o oferecessem’ (Concílio de Trento, 22, 1)” (n° 60)

“O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. ‘Uma … e idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta’ (Concílio de Trento, 22, 2)” (n° 61).

A razão do caráter incruento do sacrifício da Missa é que, devido ao presente estado glorioso da natureza humana de Jesus Cristo, o derramamento de sangue é agora impossível, pelo que o sacrifício de Cristo se manifesta externamente através da separação das espécies eucarísticas sob as quais está presente, e que simbolizam a separação cruenta do Corpo e do Sangue. “Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de vítima” (nº 63).

Reformadores mudam a ênfase para “memorial”

Esta apresentação tradicional não era do gosto dos inovadores, que começaram a dar ênfase à comemoração, embora sem a conotação de nuda commemoratio dos reformadores protestantes, mas dando-lhe o significado de um memorial objetivo e real que “re-apresenta” o que aconteceu historicamente e o comunica aqui e agora de forma eficaz.

Nessa nova perspectiva, R. Gerardi explica que “o memorial expressa a realidade do evento, a ‘atualização objetiva’ e a presença do que é comemorado. Não é que se repita, já que o evento foi definido historicamente de uma vez por todas (ephápax); mas está presente. O ato de Cristo se faz sentir hoje e aqui, engajando quem o comemora. O sacrifício de Cristo foi historicamente realizado apenas uma vez: a Eucaristia é o seu memorial (no sentido mais amplo da palavra), uma presença viva da graça” [14].

O já mencionado jesuíta Pe. Martín-Moreno nos explica por que, nessa nova perspectiva, cada Missa celebrada não é uma reiteração multiplicada do único sacrifício de Cristo:

“Não é que o tempo da salvação se repita aqui e agora, mas que o homem aqui e agora entra em comunicação uma e outra vez com uma presença permanente que está além do tempo decorrido. […] Na liturgia chega-se ao ponto de interseção do tempo e da eternidade. Ali o participante torna-se contemporâneo dos acontecimentos bíblicos. O homem torna-se uma testemunha contemporânea do que aconteceu então.

Pe. Charles Journet

Cristo nasce no Natal, ressuscita na Páscoa. A anamnese é obra do homem ou de Deus? O homem é quem comemora, mas como ato humano, seu ato de lembrar não pode transcender o tempo, não pode entrar no túnel do tempo para retornar ao passado. É apenas a ação divina que, transcendendo o tempo, traz os mistérios ao nosso aqui e agora. É por isso que a liturgia, antes da ação do homem, é a ação de Deus” [15].

O caminho havia sido aberto pelas teses pioneiras do então padre Charles Journet (posteriormente elevado ao cardinalato por Paulo VI) e do filósofo francês Jacques Maritain, para quem a presença real de Jesus Cristo duplicar-se-ia em uma espécie de presença real do sacrifício [16].

Esta opção teológica a favor do memorial (que omite que a Missa é uma renovação incruenta do sacrifício do Calvário e afirma que durante a sua celebração o sacrifício somente se torna presente), oferece uma interpretação fraca do dogma da fé proclamado pelo Concílio de Trento, segundo o qual cada Missa é “um sacrifício próprio e verdadeiro” feito em forma sacramental, porque a transubstanciação torna o Corpo e o Sangue da Vítima divina verdadeiramente presentes e simbolicamente separados [17].

O Papa Francisco opta por uma “memorialização” extrema

Desiderio desideravi faz clara e insistentemente essa opção teológica em favor da Missa como memorial que apenas de modo secundário tem o aspecto sacrificial na medida em que é uma comemoração.

Já no início, na descrição da Última Ceia que o Senhor quis comer com os Apóstolos, Francisco diz:

“Ele sabe que é o Cordeiro daquela ceia pascal; ele sabe que ele é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta, a originalidade absoluta daquela Ceia, a única coisa verdadeiramente nova na história, que torna aquela Ceia única e por isso “a Última Ceia”, irrepetível. No entanto, seu desejo infinito de restabelecer aquela comunhão conosco que era e continua sendo seu projeto original, não será satisfeito até que todo homem e mulher, de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5:9), tenha comido seu Corpo e bebeu seu Sangue. E por isso essa mesma Ceia se fará presente na celebração da Eucaristia até que ele volte novamente” (n° 4).

A propósito, note-se que naquele primeiro parágrafo descritivo da Missa, além da teoria da representação de um ato irrepetível, o Papa afirma no documento que a Missa é uma representação da Ceia, e não do sacrifício do Calvário. Isso lembra a definição original de sabor protestante da Missa de Paulo VI (defeituosa e posteriormente alterada) oferecida no nº 7 da Instrução Geral do Missal Romano, à qual os cardeais Ottaviani e Bacci se opuseram tão fortemente em seu Breve exame crítico.

Também vale a pena notar que esse parágrafo sugere que todo homem e mulher deve comer e beber do Corpo e Sangue de Cristo, ou seja, comungar. Isso sugere um universalismo soteriológico (“todo o mundo se salva”) consistente com a autorização prática dada pelo Papa Francisco a todos os cristãos — católicos ou não, estejam ou não em estado de graça, vivam ou não de acordo com o Decálogo — para receber a Eucaristia.

Voltando ao tema principal, cumpre notar que em Desiderio desideravi há algumas referências ao sacrifício de Jesus na cruz, mas em nenhum momento se diz que tal sacrifício se renova de forma incruenta em cada Missa. Pelo contrário, um dos primeiros parágrafos, embora afirme que “o conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, seu sacrifício de obediência por amor ao Pai”, diz logo após que os Apóstolos, depois de terem participado da Última Ceia, antecipação ritual de sua morte, deveriam ter entendido “o que significava para Jesus dizer ‘corpo oferecido’, ‘sangue derramado’. É disto que fazemos memória em cada Eucaristia” (n° 7).

Teria sido o momento mais apropriado para ensinar que na Missa não só se faz memória, mas também se renova de modo incruento o sacrifício do Calvário, sacramentalmente representado na separação das espécies eucarísticas. O Papa Francisco optou por omitir essa verdade de fé e referir-se apenas ao memorial.

Alguns parágrafos depois, o documento insiste que a Liturgia não é uma “recordação da recordação” dos Apóstolos, mas um verdadeiro encontro com o Ressuscitado (n° 10) (uma ideia que se repete nove vezes ao longo do documento), e continua: “A Liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Para nós, uma vaga lembrança da Última Ceia não adiantaria. Precisamos estar presentes nessa Ceia, para poder ouvir a sua voz, comer o seu Corpo e beber o seu Sangue. Nós precisamos Dele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de fazer chegar até nós a força do seu mistério pascal. O poder salvífico do sacrifício de Jesus, cada palavra sua, cada gesto, olhar e sentimento chega até nós através da celebração dos sacramentos” (n° 11).

Note-se que, mais uma vez, a ênfase é colocada na participação na Ceia, e não na união espiritual com Jesus que Se oferece ao Pai em sacrifício em cada Missa, aspecto completamente omitido.

A Missa como lembrança do “imenso dom” que Jesus presenteou na Última Ceia?

Ao falar da correta compreensão do dinamismo que se desenvolve mediante a Liturgia, Francisco usa as palavras já citadas na seção anterior, as quais deixam claro que para ele o caráter sacrificial da Missa resulta da comemoração da Páscoa de Jesus: “A ação da celebração é o lugar em que, por meio do memorial, o mistério pascal se torna presente para que os batizados, por meio de sua participação, possam experimentá-lo em sua própria vida” (n° 49).

Esta ideia se torna mais explícita ao referir-se posteriormente ao núcleo central da Missa: “Na oração eucarística — da qual também participam todos os batizados, ouvindo com reverência e em silêncio e intervindo nas aclamações (Institutio Generalis Missale Romanum 78-79) — quem preside tem a força, em nome de todo o povo santo, para recordar diante do Pai a oferta de seu Filho na Última Ceia, para que aquele imenso dom se tornasse novamente presente no altar” (nº 60).

Ele não só omite completamente a oferta de Cristo durante a Paixão (da qual a Ceia foi uma antecipação ritual), não só evita dizer que o sacrifício é renovado, mas evita a própria palavra “sacrifício”, chamando-o de “imenso dom”.

Acrescente-se a tudo isso que em nenhum lugar de Desiderio desideravi aparecem expressões como “transubstanciação”, “presença real”, ou formulações análogas que indiquem que “o alimento eucarístico, como todos sabem, [contém] ‘verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue junto com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo’”, como diz Pio XII na sua encíclica (nº 115), citando o Concílio de Trento (sess. 13 cân. l).

Tampouco nada há que se assemelhe à exortação da Mediator Dei no sentido de que os párocos não permitam que os fiéis descuidem as “devotas e mesmo cotidianas visitas ao divino tabernáculo” e a “adoração do augusto sacramento publicamente exposto” (n° 118) ou “que as Igrejas sejam fechadas durante as horas não destinadas às funções públicas”, algo que alguns já defendiam “com a desculpa de renovação da liturgia, ou falando com leviandade de uma eficácia e dignidade exclusivas dos ritos litúrgicos” (n° 161).

Foram apresentações unilaterais da Santa Missa, do teor de Desiderio desideravi, as responsáveis pela perda desastrosa — ou pelo menos grave diluição— da fé na presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo sob as espécies eucarísticas, confirmada por pesquisas de opinião em vários países, a mais expressiva das quais é a do Pew Research Center, que descobriu que “apenas um terço dos católicos americanos concorda com a Igreja de que a Eucaristia é o corpo e o sangue de Cristo” [18] .

4. De sacerdotes do Sacrifício a presidentes de Assembleias

O Papel único do Padre na Missa

Na Mediator Dei, Pio XII ensina explicitamente que “somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus” (n° 35).

Mas, acrescenta, na Santa Missa “o sacerdote faz as vezes do povo porque representa a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo enquanto é Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles: por isso vai ao altar como ministro de Cristo, inferior a ele, mas superior ao povo (São Roberto Belarmino, De missa II c.l.). O povo, ao invés, não representando por nenhum motivo a pessoa do divino Redentor, nem sendo mediador entre si próprio e Deus, não pode de nenhum modo gozar dos poderes sacerdotais” (n° 76).

É claro que os ritos e orações do sacrifício eucarístico “a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo” (n° 78), pois “com a água do batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do corpo místico de Cristo sacerdote, e, por meio do ‘caráter’ que se imprime nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo” (n° 79).

Mas como é a participação do povo nos atos do sacerdócio de Cristo? “Em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: ‘Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou’ (Fl 2,5.) oferecendo com ele e por ele, santificando-se com ele” (n° 73).

Mas Pio XII se vê no dever de reiterar mais uma vez que “o fato de os fiéis tomarem parte no sacrifício eucarístico não significa, todavia, que eles gozem de poderes sacerdotais”. Tal insistência se justifica porque já então alguns acreditavam que “o preceito dado por Jesus aos apóstolos na última ceia — fazer o que ele havia feito — se refere diretamente a toda a Igreja dos cristãos”, e julgavam que “o sacrifício eucarístico é uma verdadeira e própria ‘concelebração’” (n° 75).

Contra este erro, a Mediator Dei ensinou que “a imolação incruenta por meio da qual, depois que foram pronunciadas as palavras da consagração, Cristo está presente no altar no estado de vítima, é realizada só pelo sacerdote enquanto representa a pessoa de Cristo e não enquanto representa a pessoa dos fiéis”.

Os fiéis oferecem o sacrifício pelas mãos do sacerdote “pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima”. Porém, “não se afirma que os membros da Igreja, de maneira idêntica à do próprio sacerdote, realizam o rito litúrgico visível — o que pertence somente ao ministro de Deus para isso designado —, mas sim que une os seus votos de louvor, de impetração, de expiação e a sua ação de graças à intenção do sacerdote, aliás do próprio sumo pontífice, a fim de que sejam apresentados a Deus Pai na própria oblação da vítima, embora com o rito externo do sacerdote” (n° 83).

Logicamente, Pio XII conclui explicando que não se pode condenar as Missas privadas sem a participação do povo, nem a celebração simultânea de várias Missas privadas em diferentes altares, sob a alegação inadequada da “índole social do sacrifício eucarístico”. Porque o santo sacrifício da Missa, mesmo celebrado privadamente, “tem sempre e em qualquer lugar necessariamente e por sua intrínseca natureza, uma função pública e social, enquanto o ofertante age em nome de Cristo e dos cristãos, dos quais o divino Redentor é Cabeça, e oferece a Deus pela santa Igreja católica e pelos vivos e defuntos”.

Por isso, não é “de nenhum modo requerido que o povo ratifique o que faz o sagrado ministro” (n° 15 86), nem é necessário que o povo cristão se aproxime da mesa eucarística para assegurar a integridade do sacrifício, como afirmam capciosamente os que “fazem da santa comunhão em comum quase o ápice de toda a celebração” (nos 100-102).

Os reformadores rejeitam o papel único do sacerdote e o submergem em uma “assembleia comemorativa”

Aquela clara distinção hierárquica entre celebrante e fiéis — muito clara até as reformas conciliares, pela existência da mesa de comunhão, que separava o presbitério, reservado aos ministros do altar, da nave onde permaneciam os fiéis — era insuportável aos reformadores com espírito igualitário. Para reduzi-la, recorreram ao estratagema de “redescobrir” a assembleia. O já mencionado jesuíta Juan Manuel Martín-Moreno dá a sua explicação:

“A eclesiologia que partiu da divisão entre clero e leigos teve sua perfeita visibilidade na liturgia pré-vaticana. Os coros dos cônegos se localizavam na parte privilegiada das catedrais, isolados dos demais por grades. O presbitério se localizava nas alturas, separado dos fiéis por uma grandiosa escadaria. Desta forma, destacou-se o papel mediador do sacerdote localizado lá em cima, a meio caminho entre o Céu e a Terra.

“Mas a Lumen Gentium parte da consideração do Povo de Deus antes de passar a falar dos diferentes ministérios da Igreja. A eclesiologia de comunhão [19] que o Vaticano II abraçou se refletirá na grande importância que a assembleia adquire na liturgia. Esta é talvez uma das características mais emblemáticas da reforma litúrgica.

“O papel mediador entre Deus e os homens não é mais desempenhado pelo presbítero, mas pela assembleia, na qual o presbítero exerce sua função. Não contrapomos o presbítero à assembleia. Da mesma forma que não contrapomos a cabeça ao corpo. A cabeça também faz parte do corpo. Não existe corpo sem cabeça. Não há assembleia sem ministérios.

“Mas tampouco há ministérios sem assembleia. A origem última do ministério não é a assembleia, mas Cristo; porém, como diz Borobio, ‘o ministério não se origina à parte ou fora da comunidade’. O ministro não recebe seu mandato diretamente de Cristo, como os apóstolos ou Paulo [20]. […]

“A assembleia é a tradução de QHL, que em grego é traduzido como ekklesia ou synagoge. Essas palavras designam a convocação, o ato de reunir e a comunidade reunida. Qahal é a assembleia geral do povo. Em sua evolução semântica designou o chamado, a imposição, a reunião, a comunidade reunida, a Igreja. Ecclesía não é apenas Igreja, mas Igreja convocada e reunida em um lugar específico e em um momento preciso para celebrar os mistérios do culto. […]

“É essa Igreja ou assembleia, que inclui o bispo, sacerdotes e diáconos, que participa direta e formalmente do sacerdócio de Cristo. A assembleia reunida é o reflexo e a expressão da Igreja. Nela a Igreja se encarna e se torna visível; nela e por meio dela se projeta no mundo, especialmente na Igreja local que celebra presidida pelo Bispo. Com isso, o Concílio não quer excluir que haja outras manifestações da Igreja. A liturgia é a expressão mais visível da Igreja, mas não a única. A Igreja também se manifesta na ação caritativa dos cristãos e de muitas outras maneiras.

“O fundamento desta participação está, como já dissemos, no sacerdócio comum dos fiéis. Na Eucaristia o povo oferece os presentes junto com o presidente. Na SC [Sacrosanctum Concilium, n° 48] se diz que os fiéis ‘aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada’. Nesse ponto a SC vai além da Mediator Dei, que usou a expressão quodammodo, ‘de certa forma’. Esta expressão foi suprimida pelo Concílio.

“Daí surge a consciência de que as ações litúrgicas não são privadas, mas têm caráter comunitário (SC 26). É preciso devolver ao corpo da Igreja o que sempre foi seu patrimônio; a assembleia deve recuperar o protagonismo que havia perdido devido ao clericalismo abusivo. […]

“Esta insistência no caráter comunitário da celebração é o que motiva a recuperação da concelebração, que contribuiu para desprivatizar a Missa e destacar a unidade do sacerdócio e do sacrifício eucarístico (SC 57). Nesta perspectiva, torna-se hoje incompreensível que na liturgia pré-vaticana pudessem ser celebradas diferentes liturgias simultâneas no mesmo templo, e que alguns fiéis assistissem a uma e outros a outra.

Portanto, hoje não podemos mais falar de uma assembleia que assiste à Missa, mas de uma assembleia que celebra a Missa. O bispo ou sacerdote que preside a celebração não pode mais ser chamado de ‘celebrante’, porque todos são celebrantes, mas sim de ‘presidente’. Isso, que já foi sugerido na SC 26, é expressamente declarado no I[nstitutio] G[eneralis] M[issale] R[omanum, nos] 1 e 7. Fica desterrada para sempre a expressão popular ‘ouvir Missa’. […]

“Esta eclesiologia de comunhão acaba influenciando até os menores detalhes da reforma litúrgica. Influencia muito a arquitetura das igrejas pós-conciliares, nas quais o presbitério só é elevado acima da assembleia o mínimo para que suas ações possam ser vistas por todos. As grades, as mesas de comunhão foram eliminadas.

O centro da Igreja é o altar e não o sacrário, que agora foi transferido para uma capela lateral. O traçado da nave não é mais retilíneo, como dentro de um ônibus, mas semicircular, para que os fiéis se vejam melhor e se sintam mais parte um do outro. Os altares laterais encostados às naves foram removidos. O coro localizado na parte de trás da igreja desapareceu. O ministério do canto não pode situar-se fora da assembleia, mas como parte dela” [21].

O sacerdote reduzido a “presidente da assembleia” e os leigos elevados a concelebrantes

Que o celebrante seja toda a assembleia e que o ministro do altar seja reduzido à condição de presidente da assembleia é o que Desiderio desideravi põe em foco, não negando, mas omitindo completamente que só o sacerdote realiza in persona Christi a imolação incruenta do sacrifício eucarístico.

A palavra sacerdote — que define precisamente aquele que realiza e oferece o sacrifício — aparece apenas três vezes nas versões italiana (original) e espanhola da exortação*, duas das quais apenas para se referir a um clérigo ordenado. Mas a expressão “presbítero” — que em sua origem grega e latina significa apenas “o mais velho”, o “decano” — é usada 12 vezes em italiano e 15 vezes em espanhol.

[* Note-se que isso não acontece na versão em português, porque a palavra “presbítero” nunca se tornou comum entre os católicos de língua portuguesa para se referir aos padres. Ela é usada apenas como adjetivo, em expressões como “ministério presbiteral”, “conselho presbiteral” etc. Por isso, a versão portuguesa usa “sacerdote” onde o original italiano e a tradução ao espanhol empregam “presbítero”.]

Enquanto “presidência” e o verbo presidir (ou suas conjugações) aparecem 14 vezes, a expressão “celebrante” aparece apenas uma vez e insinua que se aplica a toda a assembleia: “Recordemos sempre que é a Igreja, o Corpo de Cristo, que é o sujeito celebrante e não apenas o sacerdote” (n° 36). E depois o afirma explicitamente: “O sacerdote também é formado [pelo ritual] por ele presidir à assembleia celebrante” (n° 56).

O documento reconhece que o ofício dos padres “não é principalmente um dever que lhe é atribuído pela comunidade, mas sim uma consequência do derramamento do Espírito Santo recebido na ordenação que o capacita para tal tarefa”. Mas, ao definir sua tarefa, não diz que é aquela de sacrificar sacramentalmente a Vítima, mas a de presidir as assembleias: “O sacerdote vive sua participação característica na celebração em virtude do dom recebido no sacramento da Ordem, e isso se expressa precisamente na presidência” (n° 56).

No parágrafo seguinte proporciona uma interpretação exclusivamente descendente — catabática — de sua missão mediadora, omitindo que o sacerdote oferece o sacrifício a Deus em nome de toda a Igreja:

“Para que este serviço seja bem feito — aliás, com arte! — é de fundamental importância que o sacerdote tenha a consciência viva de ser, pela misericórdia de Deus, uma presença particular do Senhor ressuscitado. O ministro ordenado é ele próprio um dos tipos de presença do Senhor que torna a assembleia cristã única, diferente de qualquer outra assembleia. (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7) Este fato confere peso ‘sacramental’ (em sentido amplo) a todos os gestos e palavras de quem preside. A assembleia tem o direito de poder sentir naqueles gestos e palavras o desejo que o Senhor tem, hoje como na Última Ceia, de comer a Páscoa conosco” (n° 57).

As individualidades fundidas na coletividade

Esta imersão quase total do ministro ordenado na “assembleia” verifica-se, por outro lado, no fato de esta ser mencionada 18 vezes, destacando a sua função celebrativa e o seu caráter coletivo, o que muitas vezes dificulta para cada fiel render a Deus um culto verdadeiramente interior, oferecendo-se a Ele pessoalmente em íntima união com Cristo-vítima.

“Penso em todos os gestos e palavras que pertencem à assembleia: reunir-se, andar cuidadoso em procissão, estar sentado, de pé, ajoelhar-se, cantar, ficar em silêncio, aclamações, olhar, ouvir. Há muitas maneiras pelas quais a assembleia, como um corpo, (Ne 8:1) participa da celebração. Todos juntos fazendo o mesmo gesto, todos falando juntos em uma só voz — isso transmite a cada indivíduo a energia de toda a assembleia. É uma uniformidade que não apenas não amortece, mas, ao contrário, educa os crentes individuais para descobrir a singularidade autêntica de suas personalidades não em atitudes individualistas, mas na consciência de ser um só corpo.” (n° 51).

Quão mais judiciosa foi a seguinte recomendação de Pio XII:

“A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dissemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são iguais em todos, nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos cristãos não podem participar do sacrifício eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza” (n° 133).

Caberia perguntar se boa parte da deserção da Missa dominical que se seguiu à reforma litúrgica não vem do descontentamento de muitos fiéis diante do caráter “assembleísta” e coletivista com que o novo rito foi celebrado na maior parte das paróquias, não deixando espaço para a piedade individual.

E, sobretudo, dever-se-ia perguntar se a queda vertiginosa do número de seminaristas não se deve ao fato de que alguns daqueles que sentem o chamado de sua vocação não respondem positivamente porque a imagem de um ministro ordenado apenas como “presidente da assembleia” não corresponde à imagem tradicional do sacerdócio, na qual a consagração da própria vida encontra o seu modelo e consumação na realidade sacrifical da Santa Missa.

5. A Missa de “outra fé”?

Uma pergunta incômoda

Nos quatro itens analisados acima — (1) a finalidade do culto litúrgico; (2) o mistério pascal como centro da celebração; (3) o caráter memorial da Santa Missa; e, por fim, (4) a presidência da assembleia litúrgica — fica bastante claro que a visão da Liturgia de Desiderio desideravi é unilateral, pois coloca todos os acentos nas sílabas erradas, embora suas palavras, consideradas individualmente, possam parecer corretas a ponto de merecerem elogios de alguns tradicionalistas, mesmo entre os mais instruídos.

O que o Papa Francisco parece querer realçar são as teorias e preferências dos liturgistas inovadores, não a doutrina tradicional da Igreja. Uma análise detalhada mostra que o resultado final é uma apresentação da vida sacramental da Igreja, em particular do rito da Santa Missa, que em seu conjunto não parece estar em harmonia com os princípios e conselhos pastorais da última grande encíclica litúrgica prévia ao Concílio Vaticano II, a saber, a Mediator Dei do Papa Pio XII.

A pergunta incômoda que surge é a seguinte: essas duas formas rituais muito diferentes correspondem realmente à mesma fé? No campo dos inovadores mais avançados, a resposta é clara: trata-se de duas posições litúrgicas incompatíveis, que correspondem a duas posições dogmáticas incompatíveis: uma é a fé que permeia o rito tradicional; outra fé é aquela que permeia o novo rito.

É por isso que o jesuíta citado, Pe. Martín-Moreno, insiste com tanta veemência que a “Missa nova” definitivamente suplanta (e, é preciso dizer, repudia) a orientação e a posição teológica da Missa antiga.

A Missa de ontem já “não pode ser a norma” para a fé de hoje

De fato, a meio caminho entre o controverso motu próprio Traditionis custodes e a última exortação apostólica de fevereiro deste ano, um casal de animadores da autoproclamada Conferência Católica dos Batizados Francófonos publicou um eloquente artigo no jornal La Croix.

Aproveitando que na França as pessoas se referem amiúde ao rito tradicional com a expressão “la messe d’autrefois” (a missa de outrora), e que autrefois e autre foi (outra fé; fé diferente) se pronunciam em francês exatamente da mesma forma, eles exprimiram a sua opinião com um trocadilho, sob o seguinte título:“La fin des messes d’autre ‘foi’, une chance pour le Christ!”(O fim das missas de outra ‘fé’, uma chance para Cristo!) [22].

O artigo de Aline e Alain Weidert tem o mérito de chamar as coisas pelo nome e ser lógico em suas conclusões. Seguem alguns longos trechos que falam por si, dispensando comentários (os destaques são do original):

“O espírito da liturgia de outra ‘fé’, sua teologia, as normas da oração e da Missa de outrora (a lex orandi do passado), não podem mais, sem discernimento, continuar a ser as normas da fé de hoje, seu conteúdo (nossa lex credendi). A prudência sugeriria não refletir muito sobre esse conteúdo para não desestabilizar ainda mais a Igreja.

“Pelo contrário! Uma fé ainda derivada da lex orandi de ontem, que fez do catolicismo a religião de um deus perverso que faz seu filho morrer para aplacar sua ira, uma religião de perpétua mea culpa e reparação, levaria a um ‘antitestemunho’ de fé, a uma imagem desastrosa de Cristo. Prova irrefutável: a concessão ainda muito frequente de indulgências, vinculadas entre outras coisas às Missas-sacrifício, em remissão dos pecados.

“Nossas missas, infelizmente, ainda estão marcadas com um forte caráter sacrificial ‘expiatório’ com finalidade ‘propiciatória’ para aniquilar os pecados (mencionados 20 vezes), para alcançar nossa salvação e salvar almas da vingança divina. ‘Propiciação’ que as comunidades Ecclesia Dei defendem com unhas e dentes, com seus sacerdotes votados ao sacrifício, treinados para rezar o Santo Sacrifício da Missa, verdadeira imolação. […]

“É dessa parte submersa da Missa Tridentina, desvio histórico curiosamente passado em silêncio (tabu?) nos debates atuais, que precisamos acabar de sair. Desde o Concílio Vaticano II percorremos um longo caminho rumo ao fato inicial de uma Eucaristia positiva, de um ‘Fazei isto em memória de mim!’, no qual todos são convidados a ser diariamente sacramento da Aliança: ‘Pelo mistério desta água e deste vinho sejamos participantes da divindade d’Aquele que assumiu a nossa humanidade’. Sacramento da Aliança, um conceito novo nesta oração [do ofertório] desde o Concílio Vaticano II. […]

“Se quisermos poder oferecer no futuro uma fé e uma prática cristã atraentes, devemos nos aventurar, através da reflexão e da formação, a descobrir um fundo ainda desaproveitado (e inexplorado) de salvação por Jesus, não colocando em primeiro lugar sua morte contra (‘pelos’) pecados, mas sua existência como uma Aliança. Porque ‘a sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento da nossa salvação’ (Vaticano II Sacrosanctum Concilium, 5). A opção é clara! Não entre sensibilidades e estéticas religiosas diferentes, mas entre intermináveis sacrifícios para apagar os pecados e Eucaristias que selam a Aliança/Cristo”.

Pelo menos aqui as coisas são ditas com clareza e sem rodeios semânticos. Mas se colocássemos o cursor de Desiderio desideravi entre as duas visões da liturgia e da Missa descritas neste artigo, tememos que ele se detivesse muito próximo ao polo da Aliança. Tanto é assim que Alain Weidert acaba de publicar em La Croix um novo artigo, eufórico com o conteúdo da exortação [23].

A fé perene e a nova teologia são incompatíveis

Em todo caso, os objetivos que o Papa Francisco se propôs com a publicação de sua última exortação apostólica — ou seja, que “abandonemos nossas polêmicas” (n° 65) e que “a beleza da celebração cristã e suas consequências necessárias para a vida da Igreja não sejam prejudicadas por uma compreensão superficial e escorçada de seu valor ou, pior ainda, por serem exploradas a serviço de alguma visão ideológica” (n° 16) — estão ainda muito longe de serem alcançados.

A razão é dada pelo próprio Pontífice: “Seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes gostos em relação a uma determinada forma ritual” (n° 31). Isso é exato.

É principalmente por razões teológicas que os modernistas enragés consideram que o rito de São Pio V é a Missa de “outra fé”, como é também por razões teológicas que os tradicionalistas consideram que o rito de Paulo VI se afasta em alguns pontos essenciais dos ensinamentos tradicionais sobre a Missa.

É em nome da fé de todos os tempos que eles não aceitam que o novo rito seja a “expressão única da lex orandi do Rito Romano”, como afirma Traditionis custodes e reitera Desiderio desideravi (n° 31).

Se a recente exortação apostólica procurou dar fundamento teológico a essa afirmação, devemos confirmar, após esta breve análise, que o tiro parece ter saído pela culatra, pois suas unilateralidades apenas confirmam a convicção dos meios tradicionalistas de que a nova lex orandi não corresponde à lex credendi que a Igreja recebeu em depósito.

E o argumento invocado pelo Papa Francisco como ultima ratio — ou seja, que os tradicionalistas devem aceitar a Nova Missa porque ela corresponde aos ensinamentos do Concílio Vaticano II — não é de molde a fazê-los mudar de ideia. Precisamente porque a Constituição Sacrosanctum Concilium, o magistério litúrgico subsequente e a Desiderio desideravi também merecem as mesmas objeções teológicas.

Em todo caso, fica aqui um convite para que teólogos e especialistas em Liturgia tratem do assunto e analisem, de forma mais profunda e científica, a contribuição que Desiderio desideravi vem dando ao debate em curso.


Notas:

1. https://onepeterfive.com/pope-francis-liturgical-longing/

2. https://www.la-croix.com/Debats/Au-dela-querelles-liturgiques-pape-nous-fait-contempler-souffle doit-habiter-toute-liturgie-2022-07-06-1201223716

3. http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1347506.html

4. As citações da encíclica e sua numeração correspondem à versão publicada no site da Santa Sé: https://www.vatican.va/content/pius-xii/es/encyclicals/documents/hf_p xii_enc_20111947_mediator-dei.html.

5. https://www.academia.edu/34752512/Apuntes_de_Liturgia.doc

6. Op. cit., p. 47-48.

7. Suas citações e numeração correspondem à versão publicada no site dos Franciscanos: https://www.vatican.va/content/francesco/en/apost_letters/documents/20220629-lettera-ap-desiderio desideravi.html

8. Joseph Ratzinger, Introdução ao Espírito da liturgia, Eds. Loyola, São Paulo, 2013, p. 19.

9. Op. cit., p. 43-44

10. https://www.cairn.info/revue-recherches-de-science-religieuse-2013-1-page-13.htm

11. https://www.crisismagazine.com/2021/sacrosanctum-concilium-the-ultimate-trojan-horse

12. http://www.fraternites-jerusalem.ca/wordpress_sdssm/wp-content/uploads/2013/04/PrésentationSacrosanctum-Concilium.pdf

13. https://www.la-croix.com/Culture/revue-Maison-Dieu-liturgie-coeur-2020-11-29-1201127197

14. Verbete “Memorial” do Dicionário Teológico Enciclopédico em https://apps.idteologia.org/index.php?r=sagradaTeologia/view&id=16

15. Op. cit., p. 46.

16. Philippe-Marie Margelidon O.P., em “La théologie du sacrifice eucharistique chez Jacques Maritain”, na Revue Thomiste, janeiro-março de 2015, pp. 101-147.

17. Ver Claude Barthe, La Messe du Vatican II — dossier historique, Via Romana, Versalhes, 2018, p. 181.

18. https://www.pewresearch.org/fact-tank/2019/08/05/transsubstantiation-eucharist-u-s-catholics/

19. Permitam-nos um pequeno desvio. para destacar a imprecisão do conceito de “eclesiologia de comunhão”, que se encontra em todos os lábios após o Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985, numa tentativa frustrada de resolver o conflito entre o conceito tradicional da Igreja, sociedade perfeita e hierárquica, e aquele da Igreja-Povo-de-Deus, igualitária, das comunidades de base. O Pe. Juan Manuel Martín-Moreno talvez tenha lá sua razão em incluir o conceito de “eclesiologia de comunhão” em sua visão de como deve ser uma assembleia litúrgica…

20. É óbvio que os atuais ministros do altar não receberam seu mandato diretamente de Cristo, mas do bispo que os ordenou. Porém, a opinião segundo a qual essa transmissão se faz por intermédio da comunidade foi condenada pelo Papa Pio VI na Bula Auctorem fidei: “A proposição que estabelece que o poder foi dado por Deus à Igreja para ser comunicado aos pastores que são seus ministros, para a salvação das almas; entendida no sentido de que a comunidade dos fiéis transmite aos pastores o poder do ministério e do regime eclesiástico, é herética” (Denz./Hün. 2602).

21. Op. cit., p. 60-62.

22. Aline e Alain Weidert, em La Croix, 02-10-2022, https://www.la-croix.com/Debats/fin-messesdautre-foi-chance-Christ-2022-02-10- 12

23. https://www.la-croix.com/Debats/Francois-lurgence-dune-formation-liturgie-2022-07-08- 1201224067

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José Antonio Ureta

José Antonio Ureta

37 artigos

Chileno, membro fundador da "Fundación Roma", uma das organizações chilenas pró-vida e pró-família mais influentes; Pesquisador e membro da "Société Française pour la Défense de la Tradition, Famille et Propriété"; colaborador da revista Catolicismo e do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira e autor do livro: "A mudança de paradigma do Papa Francisco: continuidade ou ruptura na missão da Igreja? Relatório de cinco anos do seu pontificado".

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